terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O indigenismo rondoniano está vivo no governo federal: o caso de Maraiwatsede

A oportuna decisão e a inflexivel determinação do governo federal, que abraçou a causa dos índios Xavante sobre a T.I. Maraiwatsede, têm sido um alívio para a causa indígena na atualidade. Demonstram o quanto ainda existe de indigenismo rondoniano inserido neste governo e o quanto o Estado brasileiro tem ainda senso de responsabilidade para com a causa indígena.

O governo Dilma, que vem sendo criticado por antropólogos, indigenistas, pelas ONGs e pelo CIMI, e especialmente pelas associações indígenas, em tantas questões, tem suportado todo tipo de pressão de políticos de Mato Grosso, à frente o seu atual governador, bem como por políticos já de cunho nacional, a exemplo da presidenta do CNA e senadora por Tocantins, para negociar o território xavante. Algum tempo atrás o governador do Mato Grosso quis negociar essas terras por um outro território, onde está um parque estadual de proteção ambiental, inutilmente.

Apraz-me sobremodo, devo confessar, ver políticos se metendo a negociar com os índios e quebrando suas caras de pau. Sonho que tal aconteça igualmente quando o Congresso jogar suas fichas para a abertura de terras indígenas à mineração. Deputados se metendo em negociação de mineração me dá calafrios.

Deve ser reconhecido, igualmente, que também têm passado por pressão o Congresso Nacional, diversos tribunais federais e o STF. Os fazendeiros e políticos interessados têm vindo com frequência a essas instituições para demonstrar que são pequenos lavradores as vítimas da desintrusão da T:I. Maraiwatsede, visando provocar um sentimento de empatia por sua causa. O STF, o MPF e as tantas varas de justiça têm sido inflexíveis em suas interpretações sobre a legitimidade da ocupação dessas terras pelos índios Xavante.

Por sua vez, a mídia local, estadual e nacional, especialmente do próprio estado do Mato Grosso, não tem medido esforços para informar e demonstrar que o interesse maior pela não desocupação daquelas terras advém é de grandes fazendeiros, ou ao menos de médios fazendeiros, pelos módulos amazônidas, com fazendas de gado e soja de 5.000 a 10.000 hectares de terra. A imprensa mato-grossense tem idenficado políticos, advogados e até desembargadores aposentados como donos de imensas glebas de terras, todas obtidas após a bandalheira de invadir essas terras, na ocasição formalmente pertencentes à empresa italiana AGIP, feita pelos políticos locais por ocasião da doação da empresa aos seus legítimos donos, em 1992.

De parabéns também está a FUNAI pela presença e solidariedade aos índios Xavante de Maraiwatsede. A tradição indigenista rondoniana não está perdida. O esforço de tantos indigenistas e antropólogos para, ao lado dos Xavante, re-obter as terras de Maraiwatsede, é merecedor de nosso reconhecimento e ficará na história do indigenismo brasileiro.

A retomada dessas terras, de onde cerca de 170 Xavante foram retirados em 1967, pela persuasão de missionários salesianos e funcionários do SPI, sob o tacão da ditadura militar e seu apoio ao grande latifúndio, tem uma história gloriosa. Ela começou a acontecer quando os jovens Xavante que haviam sido deslocados, começaram a tomar tento de suas vidas e da injustiça que haviam passado, com tantas mortes e sofrimentos indizíveis. Os velhos Xavante nunca deixaram de lembrar que estavam em outras terras xavante temporariamente, e que um dia voltariam às terras onde haviam nascido e se criado. Terras de mata densa, medonha, terras de cerrados altos.

A partir de fins da década de 1980, esses novos líderes Xavante começaram a refazer o seu caminho de volta. Conseguiram o apoio da FUNAI e de antropólogos que conheciam a sua história. A terra estava nas mãos da empresa italiana AGIP, que a havia comprado de um poderoso grupo liderado por um famoso grileiro de origem paulista. Dizia-se que esse grileiro possuía mais de 1 milhão de hectares de terras naquela região. Por meados de 1990 a terra havia sido reconhecida por um GT da FUNAI e em 1991 ela foi delimitada formalmente. Em 1992, por ocasião da Conferência de Meio Ambiente do Rio -- a RIO 92 -- o grupo AGIP fez a doação de seus direitos aos Xavante, de forma solene e em sua inteireza.

Entretanto, por baixo dos panos, um gerente da fazenda que controlava essa terra, em conluio com políticos locais, abriu, por assim dizer, as portarias da fazenda para a entrada de políticos, funcionários públicos, comerciantes e, enfim, até de pequenos lavradores, para entrar e demarcar seus lotes, como se fosse uma corrida de terras do velho oeste americano. Quando os índios e a FUNAI chegaram já grande parte estava invadia e loteada. Mesmo assim, a FUNAI prosseguiu em seu ofício indigenista, um novo GT delimitiu a terra, com a ajuda dos próprios índios, foi feita a demarcação in locu e em 1998 o presidente Fernando Henrique Cardoso a homologou.

Sem que um índio Xavante estivesse lá dentro.  Nos anos seguintes os Xavante tentaram entrar nessas terras, mas eram dissuadidos a voltar. Até que, em outubro de 2003, o então presidente da FUNAI, este que está a escrever, recebeu uma comitiva de Xavante pedindo ajuda para entrar na área, disposto a todo sacrifício, se a FUNAI os apoiasse. Sim, a FUNAI os irá apoiar.

Quando cerca de 150 Xavante acamparam à beira da estrada e ameaçaram entrar, levantou-se disposta a tudo uma horda de gente da outra margem do riacho que fazia a divisa sul da terra. Gritavam, soltavam foguetões, rajadas de revólver para o alto. Os Xavante não se atemorizaram. A FUNAI se apresentou com toda sua determinação e coragem, à frente Edson Beiriz e Cláudio Romero. O presidente da FUNAI visitou a área em novembro de 2003 e prometeu aos Xavante que essa terra lhes seria devolvida em breve.

Mais e mais Xavante começaram a aparecer, seja porque faziam parte das famílias que de lá haviam sido desalojadas em 1967, seja em solidariedade aos seus compatriotas. Foi um tempo heroico para os Xavante e para a FUNAI. Alojados em barracas de lona, sob sol escaldante e chuvas torrenciais, com carência de alimentação e água potável, ao sacrifício de cinco crianças e um velho, lá permaneceram de outubro de 2003 e julho de 2004.

Nesse período a FUNAI não deixou de lutar também no setor jurídico, com a presença de seus procuradores, com ações em diversos tribunis, até alcançar o STF, que,  afinal, concedeu que os Xavante nela penetrassem e tomassem posse de um pequeno trecho de uns 15.000 hectares, numa fazenda cujo dono abrira mão de seus supostos direitos por vontade própria, sem qualquer ressarcimento. Aliás, ele já havia derrubado a mata em grande parte, como tantos outros que lá estavam.

Desde então, os Xavante de Maraiwatsede têm estado presente, sofrendo pressões de todos os lados, inclusive de dentro de suas próprias hostes e por compatriotas confusos e um tanto frágeis politicamente.

Agora, nesses dias, é o governo federal que toma as rédeas do processo de desintrusão. E o tem feito com destemor e determinação. A Polícia Federal e a Guarda Nacional montaram uma estratégia eficiente de desintrusão, seguindo todos os ritos democráticos, dando tempo aos posseiros para se retirarem, sendo flexíveis em alguns pontos, rígidos em outros, conforme as pressões e as motivações dos posseiros e fazendeiros. O judiciário brasileiro está também de parabéns pela decisão, custosa e demorada, mas que, como diz o ditado, que um dia haveria de chegar.

Tudo isto é motivo de celebração das tradições indigenistas brasileiras. Que a chama do indigenismo rondoniano não apagou, que a luz rondoniana continua a brilhar.

Abaixo a última declaração da FUNAI em seu site, com o resumo dos últimos acontecimentos.

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Balanço da 1ª semana - Operação de desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé (MT)

Completou, nesta segunda-feira (17), uma semana da operação voltada à desocupação da Terra Indígena Marãiwatsédé, no Mato Grosso. Participam da força-tarefa, oficiais de justiça, equipes da Força Nacional, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e Exército, além de representantes do governo federal.

Até ontem (17), 31 fazendas tinham sido vistoriadas, 15 das quais já foram oficialmente retomadas. Nas demais, os ocupantes receberam um prazo dos oficiais de justiça de 24 horas para retirar pertences, à exceção de uma fazenda que foi intimada para, em 10 dias, retirar gado e outras posses.

A operação foi integralmente planejada para ocorrer de forma pacífica e garantir, de um lado, o direito constitucional do povo Xavante de viver em seu território tradicional e, de outro, a possibilidade de legalização fundiária aos pequenos ocupantes não indígenas, promovendo assim, uma vida digna aos envolvidos nesse processo.

Desta forma, o governo federal se comprometeu a realizar o reassentamento das famílias que atendem aos critérios e normativas do programa de reforma agrária. Até o momento, o Incra já cadastrou 183 famílias, 80 das quais se adequam ao perfil. As famílias reassentadas receberão um Contrato de Concessão de Uso da Terra, que se constitui no primeiro passo para o acesso à terra e aos créditos iniciais. Também serão integradas ao Cadastro Único do governo federal e, por meio dele, poderão acessar programas sociais como Bolsa Família, Brasil Sorridente, Brasil Carinhoso, entre outros. A partir de terça-feira (18), será realizada a mudança das primeiras cinco famílias que se cadastraram no programa de reforma agrária. Elas serão levadas ao assentamento Santa Rita, localizado em Ribeirão Cascalheira (MT).

No que se refere às grandes fazendas, informações coletadas pela Funai, Incra e Ibama, convergem no sentido de identificar 22 propriedades, detentoras de um terço das terras. Estas fazendas foram as principais responsáveis pelo rápido desmatamento da área. Conforme dados da Funai, em 1992, cerca de 66% (108.626 ha) da área total de Marãiwatsédé eram compostos de floresta e 11% (18.573 ha) de Cerrado. Atualmente, esta é a terra indígena com maior área desmatada da Amazônia Legal, com 61,5% do território desmatados, convertidos, em sua maioria, para atividades de agricultura e pecuária.

Em toda a terra indígena, 455 pessoas foram notificadas a deixar a área, por meio de mandados judiciais, expedidos entre os dias 7 e 17 de novembro.  Venceu ontem (17/12) o último prazo, de 30 dias, concedido pela Justiça Federal do Mato Grosso para que os não indígenas desocupem o território.

A desintrusão da área segue conforme o planejado e será realizada de forma contínua.

Ameaças
Desde o início da ação de desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé, em agosto de 2012, registram-se diversos casos de ameaças de morte a membros da equipe que integra a força-tarefa de desocupação. Também foram ameaçados Dom Pedro Casaldáglia, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT); o cacique Xavante Damião Paradziné, da Terra Indígena Marãiwatsédé e Wanderley Perin, atual prefeito do município de Alto Boa Vista (MT). A Polícia Federal já abriu inquérito para investigar tais intimidações e o governo federal encaminhou reforço de efetivos policiais para a região.

Além das ameaças de morte, manifestantes que resistem em deixar a área bloqueiam rodovias e dificultam o acesso das equipes que trabalham para desocupar a terra indígena. Na quinta-feira (13), árvores e outros obstáculos foram colocados nas estradas para inviabilizar o acesso da força-tarefa e foram abertos buracos em alguns trechos com o mesmo objetivo.

No primeiro dia da ação de desocupação (10), integrantes da Força Nacional, Polícia Federal e Polícia Rodoviária foram atacados com pedras por manifestantes contrários à saída da terra indígena. Os policiais revidaram com gás de efeito moral e balas de borracha. O confronto ocorreu na Fazenda Jordão, a cinco quilômetros do local vistoriado pelos oficiais de justiça, e não impediu o trabalho de desocupação.

Cartas
Em carta entregue ao Ministério Público Federal (MPF), o cacique de Marãiwatsédé, Damião Paradziné, falou do sofrimento do povo, nesses anos de luta pela terra, e da expectativa de voltar a viver em seu território. "Quem sempre ocupou essa terra foi o índio". Ele denuncia que vários índios já foram mortos nesse processo e fala da importância da desocupação para seu povo.
Emocionado com o relato do cacique, a liderança do povo Tapirapé Nivaldo Korira'i enviou uma carta de solidariedade ao povo Xavante de Marãiwatsédé, em que afirma que o povo não está sozinho, “nós estamos aqui para fazer qualquer coisa pelos Xavantes. Os Xavantes necessitam de apoio para ser mais forte na luta. Temos certeza que o nosso pai Myraty está olhando para o povo Xavante que vai dar tudo certo na conclusão da operação”.
Leia as cartas na íntegra.
A Terra Indígena Marãiwatsédé foi reconhecida pelo Estado brasileiro como terra tradicional indígena, homologada por decreto presidencial em 1998, o que, pelos termos do Art. 231 da Constituição, tornam nulos todos os títulos nela incidentes, não gerando direito a indenizações, salvo pelas benfeitorias de boa-fé.
Na década de 1960, a Agropecuária Suiá-Missú se instalou na região, onde sempre viveu o povo Xavante de Marãiwatsédé, dando início ao desmatamento da área e provocando a retirada dos indígenas para outra localidade. Os indígenas nunca se conformaram com a remoção e, sucessivas vezes, tentaram voltar ao seu território.
Em 1980, a fazenda Suiá-Missu foi vendida para a empresa petrolífera italiana Agip, que, durante a ECO 92, após reconhecimento público do direito indígena à terra, manifestou ao governo brasileiro o interesse de colaborar com a demarcação da terra indígena.
Enquanto a decisão se concretizava, ocorreram invasões ao local, gerando um clima de instabilidade e tensão entre indígenas e não indígenas, que se estende aos dias atuais. De acordo com o processo sobre o caso, em poder do Ministério Público Federal no MT, as invasões de não indígenas foram planejadas e incentivadas por lideranças, muitas das quais ocupam hoje grandes fazendas dentro da terra indígena. A intenção é relatada durante reunião, ocorrida na localidade de Posto da Mata e transmitida ao vivo pela Rádio Mundial FM, no dia 20 de junho de 1992. A gravação compõe o processo, que está disponível para consulta no MPF.
Desocupação
A ação de desocupação dos não índios da TI Marãiwatsédé teve início em agosto de 2012, atendendo decisão do Juízo da Primeira Vara de Cuiabá/MT, que, em julho deste ano, determinou o prosseguimento da execução da sentença para efetuar a retirada dos não índios e garantir o usufruto exclusivo e a posse plena do povo Xavante sobre a Terra Indígena Marãiwatsédé, conforme determina o Artigo 231 da Constituição Federal.
A ação de retirada dos ocupantes não indígenas foi planejada por uma equipe de trabalho interministerial do Governo Federal – formada por Ministério da Justiça, Fundação Nacional do Índio (Funai), Secretaria Geral da Presidência da República, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis/Ministério do Meio Ambiente (Ibama/MMA), Ministério da Defesa, Secretaria Especial de Saúde Indígena/Ministério da Saúde (Sesai/MS), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/ Ministério do Desenvolvimento Agrário (Incra/MDA), Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), Polícia Federal, Força Nacional de Segurança Pública e Polícia Rodoviária Federal – com apoio logístico do Exército brasileiro, a fim de garantir uma desintrusão pacífica, com segurança e dignidade para todos, indígenas e não indígenas.
A saída dos não indígenas é uma determinação da Justiça, comunicada via mandado judicial aos ocupantes ilegais da Terra Indígena Marãiwatsédé.
Dados da TI Marãiwatsédé
A terra indígena tem 165.241 hectares e está localizada entre os municípios mato-grossenses de São Félix do Araguaia e Alto Boa Vista. Atualmente, 928 indígenas Xavante habitam uma pequena parte da terra.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Irmã Ignez Wenzel traça quadro dramático e triste de Belo Monte

Em depoimento cândido e informativo sobre a situação dos ribeirinhos, da cidade de Altamira, dos índios que estão sendo impactados, dos interesses em minérios ali localizadas, das manobras políticas da NorteEnergia, empresa responsável pela construção da UHE BELO MONTE, das cooptações realizadas pela empresa, da concupiscência dos políticos locais, a freira Ignez Wenzel traça um quadro dramático e triste do que está se passando na região.

Talvez a melhor e mais sincera análise da situação regional seja essa entrevista, realizada pela IHU Online e repercutida pela EcoDebate.

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Ao descrever os bastidores da construção da hidrelétrica no rio Xingu, a religiosa lamenta ao reconhecer que “não existe lei, não existe Constituição. O político nos domina e não temos ação contra ele”.
Confira a entrevista.

Saída de Porto Alegre há 35 anos, a irmã Ignez Wenzel deixou as atividades que desenvolvia no Colégio São João para abraçar a causa dos colonos que migraram para o Pará em função da construção da Rodovia Transamazônica (BR-230). Hoje vive em Altamira-PA, e está engajada com o Movimento Xingu Vivo para Sempre na luta contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

Em visita ao Rio Grande do Sul, irmã Ignez recebeu a IHU On-Line, onde concedeu a entrevista a seguir. Ela percebe que “no Sul nem sempre chegam as notícias verdadeiras acerca do que acontece no Pará, porque elas ficam ‘blindadas’ em Belém. Até em Altamira as notícias não são publicadas em todos os meios de comunicação, porque alguns veículos estão conchavados com a empresa Norte Energia. Temos mais respaldo da mídia internacional”.

Ao relatar o conturbado cenário que envolve o Consórcio Norte Energia, grupo formado por diversas empresas envolvidas na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, irmã Ignez, visivelmente emocionada e sensibilizada com a situação, afirma que a Norte Energia prometeu casas para todos que seriam atingidos pela obra, mas agora avisaram que os atingidos não receberão novas casas, mas sim pré-moldadas. “Isso é horrível por causa do clima; dentro das casas fará 40º”. E continua: “eles também prometeram construir escolas, hospitais, infraestrutura para a cidade, investimento em saneamento básico, etc. Se vocês forem à cidade, não verão nenhum investimento. Além disso, a energia da região é destinada à obra de Belo Monte, e a cidade muitas vezes fica no escuro. Não costumava faltar energia na cidade, mas há alguns meses falta energia toda semana. O que nós tínhamos acabamos perdendo, até o espaço na rua. Tem até engarrafamento em uma cidade que é tão pequena. Nós éramos 90 mil e agora são 140 mil pessoas. Tem muito roubo, muita morte por acidente de moto, tudo acompanhado pelo desespero, pelo nervosismo, pois muitos crimes acontecem”.

Irmã Ignez também confirma casos de extração de minérios na Volta Grande do Xingu, onde cerca de 200 garimpeiros extraem ouro manualmente. “Está comprovado que lá tem uma jazida de 50 mil toneladas de ouro, além de diamantes e outros minérios preciosos. (…) Trabalhadores falaram para mim que eles já viram nas explosões pedaços de ouro, mas ninguém sabe para onde vão e eles não podem tocar, nem falar sobre o assunto”, relata.

Há quase quarenta anos atuando na região junto às comunidades populares e indígenas, lamenta a atual situação e comportamento dos indígenas diante da construção da hidrelétrica. “Eles estão ‘amarrados’. Dizem que, se não ‘entrarem no jogo’, passarão fome. Eles sabem que estão sendo objeto de jogo, mas não veem possibilidades de mudar a situação. Eles sabem que se contam conosco ficam debilitados, porque a Justiça está de olho no nosso trabalho. Mas isso prejudica nossa atuação, e por isso tivemos de recuar um pouco fisicamente, mas intensificamos o apoio e a logística a eles”.
Ignez Wenzel (foto abaixo) é graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. É religiosa consagrada da Congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a atual situação da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte?
 
Ignez Wenzel – A Norte Energia está com toda a pompa, avançando na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Atualmente estão construindo as ensecadeiras [1], porque o rio Xingu é muito largo e é composto por muitas ilhas. Então, estão ligando uma ilha a outra.
Estamos constantemente organizando manifestações contra a obra. No Xingu+23, na ocasião da Rio+20, abriram uma ensecadeira durante a madrugada e, com corpos humanos, escreveram “Pare Belo Monte”. Esta cena foi fotografada e a imagem foi divulgada no mundo todo e isso foi bastante importante para nossa luta.
Os indígenas mundurucus do Alto Tapajós foram para o Xingu porque queriam ver o que estava acontecendo em Belo Monte. Eles dizem que não aceitarão a construção de hidrelétricas no rio Tapajós, o qual cerca a região onde vivem.

IHU On-Line Os mundurucus estão mais articulados?

Ignez Wenzel – Eles são mais articulados porque são uma única tribo, enquanto que na região do Xingu tem oito tribos indígenas diferentes, e sempre há uma rivalidade entre eles. Os indígenas “derrubaram” um escritório e nós fomos culpabilizados. Onze pessoas do nosso grupo receberam um aviso de prisão; fomos enquadrados em cinco crimes, e o processo continua em andamento.

IHU On-Line – As manifestações de protesto ainda ocorrem com frequência?

Ignez Wenzel – Ocorrem, mas depois dessa situação, em que recebemos um mandado de prisão, os indígenas disseram que não queriam mais a nossa interferência, e sim queriam a nossa ajuda para fazer ações. Mas as últimas iniciativas estão sendo feitas pelos pescadores. Eles acamparam nas ensecadeiras durante um mês, impedindo o trabalho da Norte Energia. Nós não temos infraestrutura econômica; somos voluntários e ajudamos através do apoio que recebemos de outras instituições. Fornecemos alimentação, lonas, água, porque a água do rio já está contaminada.
Semana passada teve outra ação dos trabalhadores, porque desde o início da construção da obra eles estão lutando para ter o direito de visitarem as suas famílias de três em três meses. Hoje eles visitam suas famílias de seis em seis meses. Como eles não conseguiam negociar, se revoltaram e queimaram um caminhão. Cinco deles foram presos, e outra turma foi expulsa do canteiro de obras.
O que existe lá é um trabalho desumano. Pela manhã eles ganham um copinho de café com leite e um pão. Aí eles trabalham até o meio dia. Como são 14 mil funcionários, a comida é preparada com antecedência, mas às vezes chega estragada e azeda por causa do calor. Muitos trabalhadores ficam doentes e descontentes com essa situação.

IHU On-Line – Quantos canteiros de obra existem na região?

Ignez Wenzel – São três ou quatro canteiros de obras. Um é responsável pelas ensacadeiras, outro está preparando o canal, outros estão envolvidos com a infraestrutura. Eles jogam dinamites de seis em seis horas nos canteiros de obras. Então, as pessoas que moram na redondeza sofrem impactos à meia-noite, às 6h da manhã…
Os peixes estão morrendo e os pescadores não são considerados impactados. Mas a empresa oferece melhorias e as pessoas carentes, diante de qualquer benefício, cedem, porque esperam sempre novas possibilidades, as quais não chegam.
Os indígenas usam outra tática. Eles querem melhoramento, e depois que acaba o beneficio recebido, promovem uma nova ação para conseguirem outros benefícios. E ficam nesse impasse. Eu já disse que eles têm a força que nós brancos não temos, que eles têm a possibilidade de mudar algo, porque o mundo inteiro está de olho neles, que devem tomar uma decisão final. Eles respondem que não, e que quando a situação piorar promoverão outra ação. Eles “caíram” nessa de ganhar 30 mil reais por aldeia e cesta básica. Quando eles perceberam que ganhavam dinheiro por aldeias, passaram a multiplicá-las para cada uma ganhar 30 mil reais. Então, muitas comunidades indígenas se dividiram, se esfacelaram e se enfraqueceram.

IHU On-Line – Que povos são esses?

Ignez Wenzel – Os arara, os juruna, principalmente as comunidades que vivem na Volta Grande do Xingu. Dizem que os caiapó também já receberam benefícios, mas não tenho certeza. Sei que já venderam a madeira que tinham anos atrás. Os índios mais jovens gostam de receber dinheiro e entraram no jogo da sociedade não indígena. Eles deixaram de caçar, de pescar, e isso contamina a mística deles, de luta pela sobrevivência através do esforço.

IHU On-Line – Mas algumas lideranças ainda estão preocupadas com a situação das comunidades?

Ignez Wenzel – Sim, mas são poucas. Eles também fazem o jogo. Ora você pode contar com um deles, ora não pode. Há uma fragilidade muito grande em torno dessa questão. Mas nós, do grupo Xingu Vivo, nos sentimos fortificados. Vários jornalistas estrangeiros nos procuram para saber qual é a situação de Belo Monte.
Percebo que aqui no Sul nem sempre chegam as notícias verdadeiras acerca do que acontece no Pará, porque elas ficam “blindadas” em Belém. Até em Altamira as notícias não são publicadas em todos os meios de comunicação, porque alguns veículos estão conchavados com a Norte Energia. Temos mais respaldo da mídia internacional.

IHU On-Line – Religiosos, antropólogos e pesquisadores estão mais preocupados e engajados com a questão indígena do que os índios?

Ignez Wenzel – Não dá para responder sim ou não, porque em 2008 realizamos um grande encontro a pedido dos indígenas e dos caciques. Eles queriam uma manifestação para acabar de vez com Belo Monte.

IHU On-Line – O que acontece então?

Ignez Wenzel – Eles estão “amarrados”. Dizem que, se não “entrarem no jogo”, passarão fome. Eles sabem que estão sendo objeto de jogo, mas não veem possibilidades de mudar a situação. Eles sabem que se contam conosco ficam debilitados, porque a Justiça está de olho no nosso trabalho. Mas isso prejudica nossa atuação, e por isso tivemos de recuar um pouco fisicamente, mas intensificamos o apoio e a logística a eles.

IHU On-Line – Como está a atuação da Força Nacional de Segurança Pública nos canteiros de obra de Belo Monte?

Ignez Wenzel – A Força Nacional de Segurança Pública está lá, sim, e uma turma de policiais mora próximo de minha residência. Eles estão na região há muito tempo, mas agora a ação foi intensificada porque, diante de qualquer situação de imprevisto, a Norte Energia recorre à Força Nacional de Segurança Pública. Este ano, quando fizemos uma manifestação junto do Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, na frente de um escritório estava cheio de policiais armados. A posição do Movimento Xingu Vivo não é de depredar ou invadir, embora tenhamos sido acusados de depredar o patrimônio público.
Muitas das pessoas que nos apoiavam trabalham hoje para o governo. O MAB, por exemplo, é sustentado pelo governo. É um movimento dos atingidos e não um movimento dos pré-atingidos. Então, eles não querem que a barragem deixe de existir, porque terão benefícios depois. O MAB é isto: Movimento dos Atingidos por Barragens; se não tem barragem, o movimento não pode continuar. Portanto, o movimento não se enfrenta com o governo.

IHU On-Line – Mas eles terão embates posteriores com o governo.

Ignez Wenzel – Não sei o que vai acontecer, mas o que adianta fazer algo depois? Quando estiver no sarcófago, podem cantar as cantigas que quiserem. A pior notícia é de que a Norte Energia prometeu casas para todos que seriam atingidos, e agora avisaram que os atingidos não receberão novas casas, mas sim pré-moldadas. Isso é horrível por causa do clima; dentro das casas fará 40º.
Eles também prometeram construir escolas, hospitais, infraestrutura para a cidade, investimento em saneamento básico etc. Se vocês forem à cidade, não verão nenhum investimento. Além disso, a energia da região é destinada à obra de Belo Monte, e a cidade muitas vezes fica no escuro. Não costumava faltar energia na cidade, mas há alguns meses falta energia toda semana.
O que nós tínhamos acabamos perdendo, até o espaço na rua. Tem até engarrafamento em uma cidade que é tão pequena. Nós éramos 90 mil e agora são 140 mil pessoas. Tem muito roubo, muita morte por acidente de moto, tudo acompanhado pelo desespero, pelo nervosismo, pois muitos crimes acontecem. O que não falta são prostíbulos. Na Vila Belo Monte, que fica na balsa, há cerca de 23 prostíbulos. Então, tiram-se as conclusões de quantas mulheres, jovens, meninas e crianças têm lá. Aumentou muito o número de estupros, de violência sexual na cidade e de crianças que são molestadas, tanto meninas quanto meninos.

IHU On-Line – E o que pode ser dito sobre a exploração do ouro na volta do Xingu? Dizem que há uma relação entre a construção de Belo Monte e extração de minérios.

Ignez Wenzel – Mais ou menos na direção da margem direita da Volta Grande tem uma considerável jazida de ouro. Quando a irmã Dorothy Stang estava viva, ela esteve no Canadá, onde pediram que ela participasse de uma reunião sobre assuntos da América Latina. Lá foi falado sobre uma grande jazida de minério na Volta Grande. Ela não aguentou e se manifestou, o que os deixaram nervosos, encerrando o assunto. Quem está lá hoje é uma empresa canadense. Há cerca de 200 garimpeiros que extraem ouro manualmente, obtendo 1.000, 2.000, às vezes 3.000 mil mensais para sustentar a família, cada um deles. E está comprovado que lá tem uma jazida de 50 mil toneladas de ouro, além de diamantes e outros minérios preciosos. A Vale também já está lá. Isso tem uma explicação, porque o rio não vai produzir muita energia. Dizem que é um compromisso do Brasil secar esse pedaço de rio para favorecer a exploração do minério. Trabalhadores falaram para mim que eles já viram nas explosões pedaços de ouro, mas ninguém sabe para onde vão e eles não podem tocar, nem falar sobre o assunto.

IHU On-Line – Essa empresa canadense é a Belo Sun?

Ignez Wenzel – Sim, a Belo Sun.

IHU On-Line – Além dela e da Vale, outras empresas atuam na região?

Ignez Wenzel – Que eu saiba não. Ofereceram para os garimpeiros uma indenização de 1,5 milhão de reais para eles se retirarem. Mas eles não abriram mão, porque sabem que têm ouro não só para um dia, mas para o resto da vida. Então, a nossa luta e a nossa preocupação é ver como é que vamos conseguir que eles tenham o direito ao benefício depois, ou seja, uma porcentagem sobre a extração. Porque no Alto Xingu, na região de Ourilândia, eles conseguiram benefícios junto aos direitos humanos. Foi exigido que o povo todo saísse, porque estavam assentados em cima de uma mina de ouro. Então, com a ajuda de advogados conseguiram que o povo tivesse acesso aos benefícios dos recursos extraídos. Será mais uma luta nossa, mas precisaremos de auxílio, porque nós não temos competência legal para isso.

IHU On-Line – A extração é ilegal?

Ignez Wenzel – Certamente o Brasil já concedeu a licença. Há muitos anos um rapaz da Comissão Pastoral da Terra CPT nos apresentou um mapa mostrando que os Estados Unidos têm sobre o Brasil. Eles sabem de todos os minérios existentes no país, assim como ou outros países como o Peru. Eles também estão lá para extrair. Afinal, eles “são donos” porque descobriram. Nós não podemos entrar onde eles estão trabalhando. A terra é nossa, mas nós não podemos entrar. Tem um aviso de longe informando que ninguém pode se aproximar.

IHU On-Line – O Ministério Público acompanha o caso?

Ignez Wenzel – Eles trabalham muito conosco. Em relação a Belo Monte, temos quinze ações no Supremo Tribunal Federal que deveriam ser julgadas. Todas elas provam a ilegalidade do projeto. Essas ações não foram julgadas ainda porque o Judiciário, o alto escalão, também é do governo. Inclusive, muitas vezes falamos que estamos em uma ditadura democrática, porque não existe lei, não existe Constituição. O político nos domina e não temos ação contra ele. Os prefeitos são comprados com migalhas, os governadores também, porque todo mundo quer um pedacinho.

IHU On-Line Quem é o prefeito eleito em Altamira?

Ignez Wenzel – Foi péssimo o resultado. Um velho cacique do tempo da ditadura voltou a reinar. Domingos Juvenil é do PMDB, mas o partido aqui (no sul) é diferente de lá. Basta dizer que em um município ganhou um do DEM coligado com um petista, o que seria impossível, mas lá é tudo diferente. Lá o que temos são conchavos. O nosso município não é governado pela prefeita (Odileida Maria Sousa Sampaio), mas pela Norte Energia. Ela não tem poder nenhum. Só se faz lá o que a Norte Energia aceitar.

IHU On-Line – Qual o discurso dele em relação à atuação da Norte Energia na cidade?

Ignez Wenzel – Diz ele que a partir do dia 1º de janeiro quem vai governar a cidade é ele, e não a Norte Energia. Isso é discurso aberto. Agora, vamos ver depois, com o discurso fechado, como vai ser. Até lá tem muitos dias.

IHU On-Line – A senhora tem expectativa de mudança?

Ignez Wenzel – Com esse homem, que era da ditadura, não. Por causa dessas empresas que estão lá, pode entrar quem quiser que ficará manchado, porque a estrutura das empresas energéticas são muito pesadas em cima do povo e dos governos. Os vereadores são comprados, todos eles. Foi eleito um vereador que é um menino de luta. Ele é do PT (aí já é da Dilma Rousseff). Ele era contra Belo Monte, mas não sei se vai continuar sendo agora. Tudo muda muito.

IHU On-Line – Como a senhora vê a atuação da Igreja local?

Ignez Wenzel – Desde o início do ano para cá não mudou muita coisa. Em si, o povo tem medo. Não é que o povo seja a favor da barragem. Eles dizem: “Que bom que a senhora vai lá! Continua lá! Eu também sou contra, mas tenho medo de falar. Não posso ir até o acampamento”. É assim a população. Mas nós, irmãs, continuamos firmes. No dia, por exemplo, em que eu tive que depor, vieram irmãs nossas lá de Anapu, para me dar apoio e para os demais. Então, mantemos a unidade. Mas o restante das pessoas não consegue. Mesmo assim, nós continuamos na luta e nos manifestamos. No dia 7 de setembro, a prefeitura fez uma grande passeata com fogos. Do outro lado estávamos nós, com faixas e cartazes. Éramos um grupinho pequeno, mas todo mundo olhou para nós e não para eles. Então, são gestos que nós fazemos.
Mas não é em tudo que podemos ajudar. Lembro agora de um caso triste: um senhor que comprou 200 hectares de terra através do cartório de Vitória, e nessa terra ele plantou cacau. Ele tem quatro filhos, sendo que três são menores de idade. Aí disseram para ele que ali passaria o canal e a família teria que sair, o que o fez responder: “Daqui eu não saio, isso aqui é meu, tenho que cuidar dos meus filhos!”. Ele já é um senhor de idade, tem 60 anos. Pois foram lá e derrubaram a casa dele. Aí, a mulher pegou os filhos e foi para a cidade. Ele pegou uma lona, colocou por cima de um pé de cacau e ficou morando lá embaixo, afinal já tinham 13 mil pés produzidos e mais sete mil em crescimento. A polícia ficou ameaçando que ele tinha que sair de lá. Um belo dia, ele viu que estavam chegando dez tratores derrubando no chão todo o cacau dele, inclusive os 13 mil em produção. Ele se desesperou e fugiu. Agora nós estamos lutando para que ele seja indenizado. Mas a Norte Energia diz que ele abandonou o lote. Dá vontade de chorar! Hoje, essa família está morando de favor, pois ele não consegue emprego, porque só sabe trabalhar na roça. Eu não aguento (a irmã chora).

IHU On-Line – E pretende continuar morando lá?

Ignez Wenzel – Sim, porque, se a gente sai, quem vai ajudar esse povo? É preciso ir para lá. Enquanto eu aguentar, fico lá. Enquanto a Congregação me deixar, eu fico.Dom Erwin (Kräutler, bispo de Altamira) está decepcionado. Ele achava que ia conseguir.
Os poderes econômicos e políticos são pesados demais. Só eles têm razão. Entrei em contato com uma menina que conheço há muito tempo, que trabalhava no Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Ela foi convidada para trabalhar com os índios visando deixá-los do lado da Norte Energia. Ela ia ganhar 8.000 reais mensais. Ela disse: “O quê? Toda a minha vida trabalhando para defender os índios e agora vocês querem que eu faça o contrário?”. Ela tem uma sobrinha que é assistente social lá dentro (Norte Energia) e quis saber quantas mortes acontecem, porque a gente não fica sabendo de mortes. Na média, eles dizem que se morrer até 10 mil pessoas é normal. Só que não aparece nenhum cadáver. O que eles estão fazendo com os cadáveres? Quem é que está morrendo lá? A gente fala com os funcionários, com os trabalhadores, e ninguém sabe de nada. Para mim, eles não podem falar, porque ninguém nunca viu nada.

IHU On-Line – Mas foi constatada a morte de alguém por causa da construção da usina hidrelétrica?

Ignez Wenzel – Eles dizem que morrer tanta gente assim (10 mil pessoas) é normal. Então, deve estar morrendo gente. Só se ficou sabendo do caso de um senhor e isso foi publicado aos quatro ventos que morreu embaixo de um pau, que caiu para uma direção não esperada. Agora, aquelas pessoas que estão lá, que estão colocando dinamite, quantas será que já foram para o ar?

IHU On-Line – Vocês não têm acesso às informações?

Ignez Wenzel – Não. É segredo absoluto. Por isso que ninguém entra lá. E se você entra para trabalhar, a primeira coisa que tem que fazer é colocar esparadrapo na boca e vendas nos olhos, porque não pode ver, nem ouvir nada. Por isso que eu digo que é uma ditadura democrática.

IHU On-Line – Dom Erwin pretende continuar em Altamira?

Ignez Wenzel – Por lei, ficará até 2014. Depois, terá que pedir dispensa, porque é a norma da Igreja: aos 75 anos ele tem que se retirar do bispado. Talvez ele tenha que ficar mais tempo, talvez não. Ele também está cansado. E a gente nota que ele também não está muito bem de saúde. Imagine o estresse que esse homem viveu todos esses anos? E sendo sempre escoltado por policiais. Isso não é vida. Quando ele sai da cidade, vai para outro estado, não tem polícia nas costas. Então, acho que é por isso que ele aceita tanto trabalho fora. Ele se desliga um pouco. Mas é uma luta muito grande.

IHU On-Line – As novas irmãs têm interesse em ir para o Pará e ajudar no desenvolvimento desse trabalho?

Ignez Wenzel – Elas até têm esse interesse. Mas nós estamos em uma época muito difícil, temos muitas irmãs idosas e poucas na ação. Então, quem está em ação também tem que cumprir as necessidades urgentes daqui. Há esse problema também. E a juventude, por enquanto, está com outras dinâmicas. Infelizmente, a sociedade chegou a este ponto. Mas vai ter que surgir algo novo. O que vai ser ainda não sabemos.

NOTA
[1] Ensecadeiras são dispositivos utilizados para a contenção temporária da ação das águas em superfícies escavadas, normalmente onde se pretende executar obras sem a interferência da água. São usadas, por exemplo, para viabilizar a construção de barragens.
(Por Patricia Fachin, Graziela Wolfart e Luana Nyland)
(Ecodebate, 27/11/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Os índios e o Brasil -- A Luta

Nos últimos meses estive pensando seriamente sobre a questão indígena brasileira e nos seus desdobramentos dos últimos tempos. Por duas razões: 1. O que vem ocorrendo ultimamente é muito preocupante, como analisarei abaixo. 2. Estava terminando o livro OS ÍNDIOS E O BRASIL e queria atualizar os últimos acontecimentos dentro de uma análise mais profunda, conforme o intento do livro. Nesses dias venho apresentando este livro ao público, primeiro, em lançamento em São Paulo (já ocorrido, dia 8 de novembro), e em breve em lançamento no Rio de Janeiro -- dia 24 de novembro próximo -- SE POSSÍVEL!

Digo SE POSSÍVEL porque combinei há um mês com os moradores indígenas do velho e venerando Museu do Índio de fazer esse lançamento no próprio Museu, com a presença deles como anfitriões. O Museu é um prédio grandioso, fabuloso, com paredes de 80 cm de largura, dilapidado e abandonado, mas ainda imponente, que dá gosto de ver e estar no seu interior. Os índios moradores ofereceram para fazer danças e prestigiar o evento do lançamento, ao mesmo tempo em que se sentiram felizes por eu ter feito a escolha de lançar o livro em sua Casa, por assim dizer. Entretanto, o livro corre perigo de não ser lançado porque, hoje mesmo, um juiz cassou a liminar que segura a proteção do prédio, que o governador do estado do Rio de Janeiro tem declarado reiteradas vezes que o vai derrubar até virar pó e calçamento para os torcedores estrangeiros passarem por cima.

O velho Museu foi construído em 1862 e pertenceu a um dos genros do Imperador Dom Pedro II, que o doou para ser uma instituição de pesquisa em agro-pecuária e em questões indígenas. Eita mistura comovente! De todo modo, na República Velha ficou com o Ministério da Agricultura e foi lá que o Serviço de Proteção aos Índios foi alojado, com Rondon como seu patrocinador e os tantos diretores que o órgão teve, até 1962, quando foi transferido para Brasília. Foi ali que Darcy Ribeiro, junto com Rondon, Eduardo Galvão e outros, criou o Museu do Índio e também elaborou os termos do Parque Nacional do Xingu, dando uma revirada no indigenismo brasileiro e no processo de reconhecimento de terras indígenas. Foi ali que Rondon abrigou e recebeu tantos índios que iam à sua procura para pedir ajuda nas suas lutas por terra e respeitabilidade. Nesses dias, quando estava em São Paulo lançando o livro, o líder Yawalapiti, do Parque do Xingu, Pirakumã, me falou e me recomendou para dizer a todos que pudesse que seu pai, Kanato, costumava lhe contar que tinha ido a esse Museu falar com Rondon, e que um dia tinha levado o Raoni. Por isso é que sentia simpatia sincera pela luta dos seus patrícios urbanos na preservação do velho prédio. Andamos agora à procura de um foto que demonstre esse evento excepcional.

Tenho apoiado a causa dos índios que tomaram o Museu do Índio, desde 2006, e têm lutado com ardor pela preservação do prédio. Os índios querem transformar esse prédio num Centro Cultural, num Museu Vivo da Cultura Indígena. Acho muito meritória a luta desses índios, que aqui vivem no Rio de Janeiro e se deram conta de que o que o governador e os infiéis e ahistóricos planejadores urbanos pretendem destruir era a memória de sua vida e do seu relacionamento com os demais brasileiros não indígenas. Eles me pediram e escrevi um laudo, já publicado neste Blog, sobre a importância desse prédio e do valor simbólico para o indigenismo brasileiro.

Bem, então não sei se o livro OS ÍNDIOS E O BRASIL será verdadeiramente lançado no velho Museu do Índio. Se tudo der certo, maravilha! Se não, aí está o livro lançado neste Blog. E a luta pela preservação do velho Museu do Índio não para!

Agora, quanto à situação atual dos índios. Nem sei por onde começar. Vou escrever mais amiúde nas próximas postagens.

Por enquanto eis um pequeno resumo. Em suma: o governo Dilma está em grande falta para com os povos indígenas.

1. A questão guarani continua a mais premente e mais difícil de solução. Nos últimos tempos ficou mais caótica e mais inclinada para soluções drásticas. A falta de imaginação do governo se alia à perversidade dos fazendeiros, que se arvoram os donos da terra do Brasil.
2. O episódio da invasão dos policiais federais (foi uma invasão ostensiva!) e da morte do índio Adenilson Crishi necessita ser reparado pelo governo brasileiro, pela Funai e pelos indigenistas. Não pode passar em brancas nuvens, sob pena do indigenismo brasileiro ficar desacreditado. 
3. As pressões advindas do Legislativo brasileiro no sentido de mudar a legislação e as normas indigenistas, inclusive de demarcação de terras, têm que ser bloqueadas. Isso só poderá ser feito por determinação do governo federal, por vontade própria e por senso de responsabilidade histórica.
4. O Decreto 303, da AGU, símbolo do desvario atual do governo, deve ser revogado e arquivado imediatamente. Não pode haver negociação sobre isso.
5. Os planos de expansão econômica na Amazônia devem ser discutidos com os índios. É aí onde os índios podem encontrar um meio termo com o governo, sem deixar de se posicionar com altivez. Os planos de hidrelétricas, estradas, expansão agrícola e pastoril, manejo florestal e mineração devem ser apresentados aos índios de modo formal, em convenção convocada pelo governo federal, com participação de todas as lideranças nacionais.

Proponho ao governo que faça uma nova Conferência Nacional dos Povos Indígenas, tal como fizemos uma em 2006. Dela resultou um documento orientador, o qual não foi levado adiante, mas que precisa ser retomado em sua filosofia básica. 

Na nova Conferência, novos termos poderão ser ajustados. Porém os índios devem estar cientes de todo o processo e saberem onde se posicionam, os riscos e incertezas que terão e as possibilidades de participação no "progresso" da Nação.

Nada que diz respeito a impactos sociais e ambientais sobre terras e culturas indígenas pode ser feito à revelia dos índios. Chega de enrolação barata, com fingidas consultas, e depois "tratoragem", brutalidade e política de cooptação no varejo sobre os índios. 

Governo Dilma Rousseff: ponha a mão na consciência; ponha as cartas na mesa, exponha suas intenções e negocie com os índios aquilo que é possível de ser feito nos próximos anos. Para usar uma palavra tão usada recentemente no STF, "chega de açodamento", de pressa, de ânsia por fazer coisas que significam a destruição de tantas coisas belas. Se houver clareza e honestidade, os índios saberão escutar, pensar o que pode ser importante para seu futuro, abrir mão de uma prerrogativa aqui outra ali, para ter uma segurança permanente e um lugar ao sol na Nação. 

Eis minhas considerações mais sinceras e precisas. Salvo melhor juízo!

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Video mostra chegada dos policias federais e tiroteio na Aldeia Munduruku



O video acima mostra uma versão diferente da que foi dada pelo delegado da Polícia Federal que comandou o ataque aos índios Munduruku e Kayabi, em aldeia na beira do rio Teles Pires,

É um video simples, de 6´38´´, feito claramente por um amador, provavelmente indígena, que estava fascinado pelo voo do helicóptero. Só no último minuto, no minuto 5, 38 segundos, é que se ouve o primeiro tiro sendo disparado. Sete segundos depois ouve-se outro estampido. Em seguida vem um voleio de tiros, bem mais de 30, até que o cineasta perde o controle, provavelmente cai, pois a última cena mostra a grama de pertinho, e o video para.

Vê-se nos primeiros minutos que não havia preparativos para receber os policiais com emboscada. Ao contrário, havia mulheres crianças e jovens passeando pela aldeia. O cineasta foca o helicóptero e não parece se dar conta de que algo possa estar acontecendo. Alguém passa e pede um cigarro. Um rapaz passa andando com uma borduna e vai em direção ao helicóptero; um vai correndo com um maço de flechas, eis o que vemos de preparativos de guerreiros.

Enquanto isso, o helicóptero para no campo de futebol da aldeia e dele descem uns 8, 10 policiais. Depois, vê-se que eles entram na barcaça localizada na beira do rio, todos portando armas, tipo fuzil ou metralhadora. Estão vestidos para a guerra. Em certo momento, antes do tiroteio, vê-se que eles estavam tensos, mas não nervosos a ponto de disparar.

Considerar que houve uma emboscada é pura fantasia. Não se vê lances de flechas sendo atiradas em direção aos policiais. O que se vê são policiais mirando e atirando para uma direção no mesmo nível, e alguém dizendo que são balas de borracha. Até então os índios estavam ingênuos.

O que pensar de tudo isso?

Primeiro, que cabe à Funai, ela própria, exigir do Ministério da Justiça uma abertura de inquérito e soltar uma nota de protesto contra a Polícia Federal e uma nota de solidariedade ao povo daquela aldeia, especialmente aos familiares do índio que foi mortalmente baleado três vezes.

Segundo, que cabe à Funai se dirigir aos Munduruku, aos Kayabi e aos Apiaká que moram na beira do rio Teles Pires e pedir desculpas em nome do Estado brasileiro e do indigenismo.

Terceiro, cabe à Funai e aos seus indigenistas retomar o diálogo com os povos indígenas, que vem perdendo cada vez mais nos últimos anos.

Quarto, cabe à presidenta Dilma Rousseff, em nome do Brasil, se dirigir oem desculpa, solidariedade e apoio aos índios feridos e agredidos e aos impactados por toda essa operação e pela ação de garimpeiros, madeireiros e barrageiros naquela terra indígena.

O que aconteceu foi um grave incidente no indigenismo brasileiro e não pode se deixar passar em brancas nuvens.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Um gostinho do livro Os Índios e o Brasil: Introdução


Introdução

O Brasil e os índios, desde 1500, formam uma dupla incombinável. A relação entre ambas as histórias é claramente inversa: à medida que o primeiro cresce, o outro decresce. Independentemente do período histórico – seja colônia, monarquia, república, ditadura ou democracia –, nota-se sempre a má sina dos índios: pressões sobre suas terras, desleixo com sua saúde e sua educação, desrespeito, injustiça e perseguições que sofrem, vindas de todos os quadrantes da nação (inclusive, suspeitamos, do nosso próprio íntimo derrotista). Poderíamos facilmente chegar à conclusão de que não há lugar no Brasil para os índios. Não no Brasil de hoje.

A bem da verdade, a relação que os índios têm com o Brasil, sob tantos aspectos, não é pior nem melhor do que trinta ou oitenta anos atrás. Os mesmos problemas de séculos passados permanecem: má vontade e desleixo das autoridades para com os habitantes autóctones deste país, política indigenista dúbia, ambição por parte das elites político-econômicas e falta de solidariedade humana. Um número expressivo da população no Brasil insiste em condenar os índios à margem da história, considerando-os sociedades inviáveis e um empecilho à consolidação da civilização brasileira. Em contrapartida, vem aumentando o número de brasileiros que simpatizam com os índios e que os reconhecem senhores originários dos territórios nos quais habitam, para quem a nação como um todo tem um gigantesco débito a resgatar. Podemos nos regozijar de que tal simpatia não é apenas comiseração, mas, sim, o início de uma conscientização comprometida que vê os índios como parceiros e aliados do potencial cultural brasileiro.


Não resta dúvida: o povo brasileiro conhece mais o índio1 agora do que há alguns anos. Esse fator foi determinante para aumentar o seu nível de consciência política ao ver a luta pela sobrevivência indígena como paralela à sua pela ampliação dos seus direitos fundamentais de ser humano e cidadão de uma nação moderna.

A reversão histórica na demografia indígena é o que há de mais surpreendente e extraordinário na relação entre os índios e o Brasil. Não é mais temerário afirmar, como o fizemos em primeira mão há 25 anos, que os índios, afinal, sobreviveram, e que esta é uma realidade concreta e permanente. É um tanto impiedoso valorizar em demasia o termo
sobrevivência para um quadro histórico em que 90% da população indígena originária desapareceu num período de pouco mais de 500 anos, se comparado com o ano de 1500, quando havia cerca de cinco milhões de índios no território em que é hoje o Brasil. Não se pode falar nessa sobrevivência sem se dar conta do quanto foi perdido durante esse período.

Hoje são cerca de 530 mil índios que vivem em terras indígenas no país, e por volta de 360 mil que estão nas cidades, de acordo com o Censo 2010 do ibge. Porém, em meados da década de 1950, segundo um conhecido estudo de Darcy Ribeiro, os índios somavam cerca de 100 mil indivíduos e estavam em permanente declínio. Não somente morreram e foram mortos milhões de seres humanos, como se extinguiram para sempre, calcula-se, mais de cinco centenas de povos específicos, de etnias e culturas humanas produto de milhares de anos de evolução e adaptação ao meio ambiente físico e social em que viviam. A humanidade perdeu com isso não só os valores e conhecimentos que, definitivamente,
deixaram de fazer parte de seu acervo, como se ressente pela diminuição da diversidade biológica que possibilita mais chances de sobrevivência ao Homo sapiens.2

O fato é que há fortes indícios de que as populações indígenas atuais vêm crescendo nas últimas cinco décadas, surpreendendo as expectativas alarmantes e as consideradas mais realistas de antropólogos, historiadores e indigenistas de tempos atrás. Alguns povos indígenas, como os Guarani, os Terena, os Guajajara, os Tikuna, os Makuxi e os Mura,
que têm mais de duzentos anos de contato com o mundo luso-brasileiro, parecem ter adquirido reforço biológico e cultural para defender-se das adversidades mais brutais que lhes foram impostas até agora, além de já terem alcançado populações de mais de vinte mil indivíduos. Muitos que haviam sofrido quedas expressivas, de mais de 50% de suas populações originais, deram um salto de crescimento, a exemplo dos seguintes povos: Karajá, Munduruku, Canela, Kayapó, Xavante etc. Outros mais, como os Urubu-Kaapor, Gaviões-Parkatejé, Kayabi, Juruna, Yawalapiti,Nambiquara, Tapirapé etc., que estiveram próximos de ser extintos, se recuperam e se estabelecem biológica e culturalmente.

Quadro 1 – Relação das 15 maiores populações indígenas em 2010
População indígena com indicação das 15 etnias com maior número de indígenas,
por localização do domicílio – Brasil – 2010
Número de ordem
Total Nas terras indígenas Fora das terras indígenas
Nome da etnia População Nome da etnia População Nome da etnia População
1 Tikuna 46045 Tikuna 39349 Terena 9626
2 Guarani Kaiowá 43401 Guarani Kaiowá 35276 Baré 9016
3 Kaingang 37470 Kaingang 31814 Guarani Kaiowá 8125
4 Makuxi 28912 Makuxi 22568 Mura 7769
5 Terena 28845 Yanomami 20604 Guarani 6937
6 Tenetehara 24428 Tenetehara 19955 Tikuna 6696
7 Yanomami 21982 Terena 19219 Pataxó 6381
8 Potiguara 20554 Xavante 15953 Makuxi 6344
9 Xavante 19259 Potiguara 15240 Kokama 5976
10 Pataxó 13588 Sateré-Mawé 11060 Tupinambá 5715
11 Sateré-Mawé 13310 Munduruku 8845 Kaingang 5656
12 Munduruku 13103 Kayapó 8580 Potiguara 5314
13 Mura 12479 Wapixana 8133 Xukuru 4963
14 Xukuru 12471 Xakriabá 7760 Tenetehara 4473
15 Baré 11990 Xukuru 7508 Atikum 4273
Fonte: ibge, Censo Demográfico 2010.

Porém, há ainda o risco de muitos povos indígenas continuarem a sofrer reduções populacionais e chegarem a pontos sem retorno, como já aconteceu nos últimos 100 anos com os Xetá, do Paraná, os Krêjé, do Maranhão, os Kayapó do Pau d’Arco, do Pará, os Baenan, do sul da Bahia, e muitos mais que, para sobreviverem individualmente, tiveram
de se mesclar física e culturalmente com outras etnias mais numerosas. Os casos mais dramáticos são: os Avá-Canoeiro, do Tocantins, que somam menos de 12 pessoas; os Juma, apenas 5 deles, todos vivendo entre os Uru-eu-wau-wau, em Rondônia; os 2 irmãos, chamados pela Funai de Auré e Aurá, encontrados no Pará, que hoje vivem no Maranhão,
sem se saber a que povo pertenceram; e o chamado “índio do buraco”, um único sobrevivente de um povo atacado já na década de 1970, no sudoeste de Rondônia, por capangas de fazendeiros, que, de tanto pavor, não quer falar com ninguém e vive escondido numa palhoça dentro da qual cavou um buraco na terra. Há, pelo inverso, aquelas etnias que estavam praticamente desaparecidas, de quem não se ouvia mais falar havia muitos anos, como os Guató, do alto rio Paraguai, os Puruborá, de Rondônia, que de repente reapareceram, os mais velhos ainda falando suas línguas, a exigir um lugar ao sol. Há também comunidades de lavradores no sertão nordestino e ribeirinhos da Amazônia,
antes vivendo como “caboclos”, que, por motivos diversos, “ressurgem”, assumem uma identidade indígena na base da convivência comum e na lembrança de terem sido índios no passado, de partilharem de rituais ou hábitos diferenciados dos seus vizinhos. São muitos esses casos e seu ressurgimento é explicado por uma teoria conhecida como “etnogênese”,
originalmente aplicada a casos de populações urbanas em cidades africanas que recriam sua antiga identidade tribal. As adaptações dessa teoria no Brasil se dão pela especificidade dos casos brasileiros. Nos últimos 15 anos surgiram povos como os Tupinambá, no sul da Bahia, os Tumbalalá, no médio rio São Francisco, os Tabajara, na Paraíba, os Anacé e mais dez grupos diferentes no Ceará, e até os Apicuns e Borari, na foz do rio Tapajós. Por fim, há de se mencionar aqueles povos indígenas que continuam a viver como sempre viveram, antes da chegada de portugueses ou brasileiros, nas suas florestas ermas, muitas vezes fugindo do contato com outros índios e, acima de tudo, de brasileiros. A
eles dei o cognome de índios autônomos, por viverem autonomamente; mas, na literatura indigenista e antropológica ainda são chamados de isolados ou até de arredios, o que consiste numa atitude brasilo-cêntrica, com permissão da má expressão.

Na amplitude de situações de inter-relacionamento, que vai desde os índios ressurgentes do Nordeste – quase todos fazendo parte de sistemas socioeconômicos regionais – até os índios autônomos, que permanecem à margem ou nos interstícios da expansão econômica brasileira, os índios brasileiros, ou os índios que habitam o Brasil, lutam à sua maneira por um lugar na comunidade dos homens, sem ter tanta clareza de qual seria esse lugar. Nem nós, que, do outro lado (do mais seguro), tentamos compreender o sentido e a marcha da história da humanidade, especialmente do Brasil, sabemos o que poderá vir a acontecer. Somente que o quadro étnico brasileiro não é terminal, como se postulava antes (e muitos assim o queriam). 

O delineamento de uma visão e de uma estratégia para se estabelecer a continuidade e a permanência segura dos povos indígenas no Brasil é complexo e ardiloso – pois a questão indígena se movimenta por forças adversas de grande poder de destruição –, sustentado por forças menores de defesa, influenciado por acontecimentos indecifráveis no tempo imediato de uma decisão a ser tomada. Por exemplo, o que significaria para uma população indígena relativamente pequena oaporte de recursos monetários advindos de royalties pela exploração de minérios em suas terras, como querem alguns? A sua capitalização ou o seu aniquilamento cultural? O que significará a presente atitude do governo Dilma Rousseff, através do Decreto 303, publicado pela Advocacia-Geral da União, de aceitar as ressalvas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – no sentido de não ter de consultar os índios ao se determinar a construção, em terras indígenas, de estradas, linhões de transmissão de eletricidade, ou a instalação de unidades militares?

O presente indígena está diante de nós, como um fenômeno social real, porém difícil de compreender e cheio de ações e motivações inesperadas. Assim, voltar-se para o seu passado é imprescindível a fim de se cotejar com o presente e compreendê-lo melhor. Mas também só faz sentido se projetado num futuro próximo ou vislumbrável, pois está condicionado a tantos outros acontecimentos e forças sociais que o exercício da prospectivização se torna inevitável para se propor ideias e soluções possíveis à sua existência. A dinâmica de seu relacionamento, que se dá com quase todos os segmentos da nação, e o presente que se constituiu a seu respeito deixam claro que os índios são uma questão de âmbito e interesse nacionais. Não se pode fugir ao índio, nem que o Brasil vire potência mundial. Propomo-nos a compreendê-lo em sua problemática mais ampla e discutir caminhos para a sua permanência no seio da nação brasileira, como parte essencial e integrante do seu povo.

A amplitude da questão indígena

A questão indígena nasceu com o descobrimento do Brasil, da América em geral, e continuará a existir enquanto houver povos indígenas. Diz respeito ao índio e suas relações com o mundo que se criou ao seu redor e à sua revelia, compungindo-o à condição de estranho na sua própria terra, forçando-o até à morte ou ao desaparecimento cultural.

O índio é o centro da questão, mas a sua composição abrange quase todos os segmentos nacionais, seja por contraposição, seja em complementaridade ou até por ascendência. Suas transformações se dão desde o tempo em que os índios eram uma ameaça real ao estabelecimento colonial português e, por isso, combatidos em guerra, passando pelas
relações de escravidão e servilismo, pela instituição do paternalismo (que nasce no Império e se consolida na República), até a crise de libertação que caracteriza os tempos mais recentes. A questão caminha com o desenvolvimento do país, quase sempre em relação inversa – eis o sentido da sua tragédia. Que isso seja considerado um fato normal e
inexorável – eis a sua racionalização, tão entranhada no pensamento científico quanto no popular. Para compreendê-la melhor, é preciso recolocá-la na história, seguir os seus passos e os seus percalços, observar a sua dinâmica e os seus pontos de equilíbrio – nunca, porém, de harmonia entre as partes –, e daí retirar as lições que apontem outras
possibilidades no presente e para o futuro.

A questão indígena se processa numa dimensão histórica mais ampla do que aquela que define a história brasileira ou mesmo a americana em geral. Ela é a representação concreta de um intercruzamento que infelizmente se dá como embate entre dois tipos de civilização, dois grandes complexos de possibilidades do ser humano. Por um lado, a civilização europeia, síntese e fulcro dispersor das experiências culturais de 10 mil anos de existência de centenas de povos que, de uma forma ou de outra (quase sempre pelas guerras e pela
opressão, mas também pelo diálogo e pela difusão do conhecimento), produziram um complexo dinâmico que estava em expansão incontida a partir do século xv. Essa civilização não se restringe ao continente europeu propriamente dito, mas engloba elementos de todo o Velho Mundo, a Ásia, o Oriente Médio e o Mediterrâneo africano. Isso fica muito claro não somente porque essa civilização é formada pelo acervo de todos esses
recantos, mas também porque o seu povo, o seu material humano, fez evoluir um sistema imunológico como um todo. Essa unidade biológica foi fundamental quando do confronto com a civilização do Novo Mundo. Do outro lado, a civilização das Américas, também com um período de desenvolvimento idêntico, mas sem uma integração completa entre os seus fulcros de criatividade e poder. Os grandes complexos culturais mexicano, guatemalteco e andino não se expandiram além de suas fronteiras, nem interligaram os complexos intermediários, como as culturas do deserto norte-americano e os cacicatos da América Central e dos Andes setentrionais. No século xv as civilizações dos Astecas e dos Incas buscavam expandir-se e alcançar novas fronteiras, mas sem grandes resultados. A tentativa
incaica de penetrar na Amazônia fora frustrada e só a custo de muita força militar é que asseguraram algumas posições no planalto boliviano e nas encostas dos formadores do grande rio. Na verdade, duzentos ou trezentos anos antes, essas civilizações haviam alcançado maior expansão e esplendor. Os demais povos viviam em sistemas políticos mais simples e defendiam a sua liberdade de qualquer jeito.

Às Américas faltaram o cavalo (que aqui se havia extinto 10 mil anosantes), a descoberta do ferro, a aplicação das utilidades técnicas da roda e, sobretudo, o contato com o desenvolvimento do Velho Mundo, especialmente com suas doenças. O sistema imunológico dos povos americanos não conhecia as terríveis bactérias, vírus e parasitas que durante anos haviam sido o flagelo dos povos de lá, mas que por isso mesmo
adquiriram as defesas naturais para o seu combate e a sua sobrevivência. Ao trazer esses flagelos para o Novo Mundo, transportaram a sua maior arma.4 Esse aspecto universal da questão indígena parece a todos como em vias de conclusão. Talvez uma nova civilização, um novo complexo cultural, juntando os potenciais de todas as suas culturas constituintes,
esteja em formação no nosso continente, certamente com influência preponderante
do seu vencedor. Essa é, sem modéstia, a grande visão utópica de Darcy Ribeiro. Restam, no entanto, alguns enclaves da civilização originária, nos Andes, no México, no deserto americano, enfim, no Brasil. Quem vê a força inerte que se contém nos rostos dos Quéchua
e dos Aymara, do Peru, da Bolívia e do Equador, sente que talvez nem todas as fichas estejam contadas. Mas não se liga muito a isso, embora a experimentação que ocorre na Bolívia venha a ser prenúncio de novas formações sintéticas de civilização.

Quanto ao Brasil, os 230 a 240 povos que aqui estão têm um peso menor no cômputo geral. Parece que poucos acreditam neles como possibilidade de continuidade histórica ou renovação cultural. São sobreviventes de uma tragédia universal que se realizou na forma de um holocausto, dentro de um território e a propósito da formação de uma nação. Seu peso atual, como de há muitos anos, não se pondera pelos seus números, mas pela qualidade que empresta ao sentimento da nacionalidade brasileira.

Uma questão ideológica

A permanência da questão indígena deve-se não somente à lembrança histórica, à presença dos sobreviventes e à continuidade de sua estrutura, mas também à sua influência ideológica e na formação da nacionalidade brasileira. A despeito da magnitude da violência que foi usada contra os povos indígenas, essa realidade inquestionável se deu
de uma forma não totalmente consensual. É mais do que interessante notarmos que dúvidas morais e forte sentimento de culpa pelo que faziam ou viam fazer acometiam muitos segmentos da civilização europeia ou, especificamente, da nação portuguesa, ao destroçar aldeias e reduzir os índios à condição de seres inferiores. Não somente as forças da Igreja Católica (que, sob o ponto de vista histórico, fazia parte do projeto português, acatava-o e promovia-o à sua maneira), mas a própria Coroa portuguesa – isto é, o rei e a burocracia estatal e, até em algumas ocasiões, os próprios colonos (sobretudo depois que sentiram o
perigo já controlado) – demonstrou um interesse especial pelos índios: olhavam-nos de uma forma sutil e mais respeitosa do que o faziam com os negros, por exemplo, reconhecendo naqueles algumas qualidades e alguns direitos. Certamente, não é por outro motivo que o primeiro conjunto de leis portuguesas em relação aos índios, contidas no Regimento de 1548, de Tomé de Souza, recomenda explicitamente que os índios devam ser tratados com respeito e amistosidade.5 Veremos mais adiante que a principal característica da política indigenista da Coroa é uma atitude de má-fé quanto à posição que o índio deveria ter no
projeto colonial – se escravo, se livre, conquanto que fosse súdito. Essa característica atinge a Igreja, secular e monástica, ora de braços dados com os inimigos dos índios, ora defendendo-os sob perigo de desacato, punição e expulsão, pela desobediência às ordens da Coroa e pela rebeldia aos poderes coloniais. Os colonizadores queriam ganhar seu
espaço econômico e político, achavam os índios infensos ao trabalho rotineiro e forçado – portanto, um empecilho à sua expansão –, mas reconheciam a sua existência livre. Reduziam-nos à natureza, à animalidade para destroçá-los quando precisavam de seus bens patrimoniais; depois, criavam leis para integrá-los.

Essa perniciosa atitude adquire contornos mais delineáveis quando o Brasil se torna independente e urge se criar uma identidade própria e dar à nação um projeto. José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Independência, com seus “Apontamentos para a Civilização dos Índios Bárbaros do Brasil”, escrito em 1819 e apresentado à Assembleia
Constituinte de 1823, inaugura a preocupação brasileira em encontrar o lugar adequado para os índios, tanto no sentimento nacional quanto no próprio território. Liberais e conservadores, senhores de terra e a pequena classe média que se formava passaram a travar uma batalha de palavras e conceitos que terminou se concretizando em leis, preconceitos e idealizações, algumas das quais ainda hoje têm repercussão.6 No início, as discussões e as propostas são centradas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, apresentadas por literatos brasileiros e estrangeiros, como o naturalista alemão Carl von Martius, que aqui estivera entre 1817 e 1821, e que sugeriu, para a formação étnica do Brasil, a imagem de um grande rio, no qual o índio representaria um dos três afluentes, junto com o branco e o negro.7 Daí por diante, essa imagem e suas variações se mantêm na consciência nacional de uma forma indelével, mesmo entre aqueles que são declaradamente anti-indígenas, como o historiador Francisco Adolpho de Varnhagen, o
cientista Hermann von Ihering e tantos mais que se juntam na crença da inviabilidade histórica do índio no Brasil. Liberais, românticos, positivistas, militares, a Igreja e a chamada sociedade civil, bem como o próprio Estado, em um momento ou outro, já foram grandes defensores dos interesses indígenas. Hoje amigos, amanhã inimigos. Em comparação com países como a Argentina, a Venezuela, a Colômbia e os Estados Unidos, o Brasil se apresenta vantajosamente com um padrão de ideologia e de políticas indigenistas ambíguo e instável, o que demonstra a sua busca por um equacionamento da questão, que reflete
a sua própria busca de identidade. (A comparação com outros países, como Paraguai, Bolívia, Peru, Equador, México etc. é mais difícil devido à composição e densidade étnicas muito diversas do caso brasileiro.) Desde a independência, não há no Brasil uma política de extermínio, assim como ocorreu na Argentina e nos Estados Unidos. É verdade que em
algumas províncias brasileiras já se extinguiram grupos indígenas simplesmente por decreto, como o fez o presidente da província do Ceará na década de 1860. Também é fato que a Lei de Terras de 1850 foi mais fundamental nesse processo de se esbulhar o índio de suas terras, ao não registrá-las e, assim, inviabilizar ou destruir dezenas de aldeias por todo
o país. Por sua vez, a própria lei indigenista do Império, que criou as Diretorias dos Índios e manda proteger as aldeias, civilizar e catequizar os índios, a partir de 1845, também falhou em garantir terras aos índios que já estavam no processo de integração na nação. Nesse sentido, o Brasil é mais sutil que a Argentina, país que, em 1879, simplesmente enviou
tropas para destruir os índios ao sul do rio Colorado, ou que os estadunidenses,
os quais os expulsam de toda a região leste do Mississipi.8 Os efeitos e as consequências das atitudes políticas brasileiras são diferentes mesmo assim. A influência do positivismo sobre os militares e republicanos os levou à criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), já na República, em 1910, cuja máxima “Morrer se preciso for, matar nunca”, adotada pelos sertanistas e indigenistas em relação aos índios arredios ao contato, constitui uma das poucas contribuições brasileiras a uma filosofia humanista ou a uma forma de cristianismo tupiniquim. Assim, a dimensão ideológica do indigenismo nacional é fundamental para se entender os problemas atuais da questão indígena. O índio está
no cerne da consciência nacional – eis a sua força maior de sobrevivência, bem como a sua instabilidade, pois essa consciência nem sempre se coaduna com a realidade.9

Atualidade da questão indígena

A questão indígena se desenrola na história brasileira com um saldo obviamente negativo para os índios. A nação brasileira se constrói sobre o patrimônio territorial dos cinco milhões de índios que aqui havia, suga o seu sangue e o transforma em “ouro vermelho” (na expressão do Padre Antônio Vieira), e recebe de doação e por osmose algumas das suas principais características culturais. Em troca, não os integra com autonomia e liberdade nem resolve seus principais e atuais problemas de sobrevivência: não somente falta um certo número de terras a ser demarcadas, como aquelas já homologadas e registradas como Patrimônio da União ainda são ameaçadas de serem revogadas por mudanças na legislação e invadidas ou assediadas por interesses econômicos. Embora suas condições de saúde tenham melhorado substancialmente, que se percebe no seu crescimento demográfico, muitas condições básicas de saúde continuam infinitamente inferiores em relação ao atendimento dos demais brasileiros, a exemplo do índice de mortalidade infantil que ainda se mantém o dobro da média brasileira (25% para 52%). No item educação escolar e oportunidades de desenvolvimento pessoal, a defasagem entre índios e não índios é assustadora!

Uma estrutura dinâmica de poder infinitamente desigual é formada por muitos e variados elementos que constituem a questão indígena no presente, tais como os povos indígenas, o Estado, a Igreja, a situação de desenvolvimento socioeconômico e suas forças de enfrentamento, os militares, os intelectuais (antropólogos, jornalistas, literatos, advogados
etc.), a classe média urbana, os fazendeiros, os posseiros. O que motiva essa estrutura varia no tempo: a mão de obra, a expansão agrícola, o valor da terra, os minerais. Está mais do que claro para todos que a terra e suas riquezas, como mercadoria e como reserva de valor, atualmente, são a grande propulsora da dinâmica da questão indígena. Os povos
indígenas retêm em seus direitos a posse efetiva, reconhecida oficialmente ou em potencial de aproximadamente 13% do território nacional. Desafiam, assim, políticas desenvolvimentistas autoritárias, interesses mineradores e madeireiros, empresas agropecuárias sustentadas por benefícios fiscais e financeiros, o capital nacional e o multinacional. Esses interesses dominantes, de maneira direta ou por intervenção política,
corroem qualquer tentativa que parte do governo ou fora dele para estabelecer os parâmetros da questão indígena a partir da definição final da demarcação de todas as terras indígenas. A expectativa é, sem dúvida, de que, assim permanecendo, as terras indígenas da Amazônia, ou onde houver interesse econômico de peso, possam vir a ser utilizadas à revelia de seus legítimos senhores. As hidrelétricas, a política de segurança nacional, a abertura de terras ao capital beneficiado e aos despossuídos de outras regiões também integram o quadro da problemática atual.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão do governo encarregado da questão indígena, criada, entre outros motivos, com a expressa função de demarcar todas as terras até 1978 (cinco anos após a lei do Estatuto do Índio), depois até 1993 (cinco anos depois da promulgação da Constituição Federal brasileira), obviamente não cumpriu sua missão. Por quê? Primeiro, porque não é fácil, tantos são os problemas. Depois, em razão da proverbial incompetência burocrática brasileira, por grandes dificuldades de retirar invasores, por interpretações jurídicas sobre o que é terra indígena, mas também por um motivo muito próprio da questão indígena. Qual seja, uma boa parte das terras indígenas até agora ainda não demarcadas somente foram assim reconhecidas pouco tempo antes (e até depois) dos referidos documentos legais. Em anos recentes, como detalharemos mais adiante, o judiciário brasileiro tem expedido interpretações sobre o que é terra indígena que vão contra
o entendimento previsto nas normas estabelecidas pela Constituição Federal e pelas interpretações da Funai. O auge dessas intervenções se deu em 19 de março de 2009, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) pronunciou-se sobre uma série de pontos relativos à demarcação, aparentemente com algum nível de flexibilidade de interpretação, já que os tribunais regionais passaram a hesitar na emissão de suas decisões, sempre sujeitas a novos reclamos. Dessa forma, a Funai, e por extensão o Estado brasileiro, não consegue concretizar uma política indigenista estável, com regras e normas que assegurem um novo lugar e um novo papel para os índios no panorama político-cultural nacional. Por outro lado, permanece uma estranha ambiguidade, para não dizer dubiedade, a respeito do caráter jurídico do índio brasileiro. Se a Constituição Federal garante todos os direitos de cidadania aos grupos indígenas e ainda os admite como culturas diferenciadas e com direitos específicos – por exemplo, o direito da posse coletiva e o usufruto exclusivo da terra –, em contrapartida, o novo Código Civil, de 2000, que retirou o estatuto de “capacidade jurídica relativa” (e, portanto, da minoridade legal do índio e da tutela do Estado), deixou para o legislativo a determinação sobre a nova condição jurídica do índio. Consequentemente, nunca se sabe se uma decisão ou ato político ou econômico indígena tem valor absoluto ou relativo. Enquanto isso, os ganhos obtidos pelos índios no conceito
da opinião pública nacional, através da luta consciente por seus direitos às terras, à saúde e à educação se confundem com a desestruturação administrativa, funcional e ética da Funai e as propostas diversionistas de outros segmentos do Estado por franquias simbólicas que pouco valor têm para a solução dos problemas reais dos índios. A visão nacional, a simpatia pelo índio e a própria política indigenista perdem com isso. Veremos mais adiante que este é um momento histórico especial na questão indígena que traz esperanças e perigos, uma época de transição sobre cujos resultados finais não temos ainda clarividência.

Nota metodológica e bibliográfica

Este livro busca cumprir a tarefa de interpretar as relações entre os índios e a nação brasileira à luz do dado histórico mais importante dos últimos tempos – o crescimento demográfico das populações indígenas – e do surgimento de uma nova autoconsciência indígena em relação à sua posição no Brasil e no mundo. Ele pretende analisar, anunciar cientificamente e avaliar as consequências desses acontecimentos de grande significado para os índios e para o Brasil.

Estamos fazendo uma revisão cautelosa da história indígena brasileira, aprofundando-a por uma nova visão estratégica da formação do Brasil, para dela extrair os fundamentos sociológicos e antropológicos que nos permitam demonstrar como e por que a grande maioria dos povos indígenas se extinguiu, e como e por que uma pequena minoria sobreviveu e aos poucos vem se recuperando, lutando para traçar o seu futuro. A partir dessa visão metodológica que enfoca a história pela perspectiva do índio que sobrevive (que é, de fato, o que nos interessa), percorremos o caminho desde a descoberta do Brasil, com os olhos de quem vive entre dois mundos: o seu, propriamente dito – de brasileiro
comum e de brasileiro intelectual e político – e o do índio, ou pelo que dele lhe é dado saber por intermédio de pesquisas de campo e em arquivos, de contatos pessoais, de reuniões e de trabalhos políticos com muitos índios e diversos povos específicos, especialmente
como presidente da Funai (2003-2007), tudo isso ao longo de quase 40 anos ininterruptos. Para o antropólogo que viveu meses a fio em aldeias dos índios Guajajara (que têm mais de 400 anos de convivência com a civilização luso-brasileira), dos Urubu-Kaapor (“pacificados”
em 1928), e entre vários subgrupos Guajá (alguns dos quais ainda permanecem autônomos, isto é, fora do relacionamento com a Funai, ou mesmo com outros segmentos indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário – Cimi – da Igreja Católica), a leitura da história brasileira, no que concerne aos índios, ganha uma coloração mais íntima, e mesmo as informações e os dados mais recônditos, as invencionices de cronistas e a má-fé interpretativa de historiadores oficiosos podem ser compreendidos e interpretados com mais segurança quanto ao conteúdo e ao sentido da presença indígena nessa história. É claro que o historiador sensível é capaz de discernir o significado da história indígena, mesmo sem ter tido conhecimento pessoal direto e culturas indígenas – e alguns o fizeram, como Capistrano de Abreu e João Francisco Lisboa. Mas a visão histórica se torna muito mais rica e densa se você experimenta a vivência prolongada numa aldeia; acompanha durante semanas a marcha forçada de um povo pela floresta, sendo transferido de um território para outro; administra sem recursos médicos uma epidemia de gripe que abate e arrasa um punhado de homens, mulheres e crianças; presencia o trabalho de um velho missionário capuchinho no seu mister de catequese de ‘desobriga’; compartilha do pavor coletivo de um povo diante do perigo de um ataque de invasores; discute com fazendeiros e comerciantes de pequenas cidades e povoados que têm desavenças com índios, com quem vivem em relação de exploração econômica, repúdio social e, ao mesmo tempo, de compadrio
condescendente; se esforça para convencer autoridades e burocratas de uma ação necessária para a sobrevivência de um povo, e não logra resultados positivos; vê o relacionamento tenso e ambíguo entre índios e lavradores sem terra; e exerce por quase quatro anos a presidência do órgão oficial indigenista, sentindo na pele as agruras da ineficácia do Estado brasileiro e as pressões de todos os lados. Enfim, tudo isso faz a sua compreensão do que foi um “descimento” se enquadrar numa realidade concreta, tangível, não só imaginada, aguçando desse modo a sua interpretação histórica daqueles momentos e do momento atual. Entende-se por descimento a transferência forçada de mais de 1.500
índios, de uma só vez (amarrados alguns, seguindo cabisbaixos a maioria), de seus territórios para vilas portuguesas – como aconteceu tantas vezes nos três primeiros séculos de colonização: as missões, os ataques de bandeirantes paulistas e de bugreiros, mais recentemente, as guerras de extermínio, as epidemias devastadoras, as quedas populacionais abruptas e irreversíveis, a formação do mundo rural brasileiro por cima dos índios e de suas terras, e outros fatos históricos mais.

Essa “vantagem” do antropólogo é em tese, claro. O olhar pessoal e as carências intelectuais também fazem molecagens no pensamento de qualquer autor. Esta é uma condição possível do trabalho do antropólogo brasileiro da atualidade e um privilégio cultural que muitos brasileiros podem viver, e a partir dela avançar no conhecimento da sua
realidade social. Muitas vezes não nos damos conta de que tal vantagem é um fator metodológico de importância transcendental, porque insere o pesquisador numa realidade histórica que pode ser vivida e observada por todas as perspectivas possíveis, no meu modo de ver teórico, hiperdialeticamente.10 Embora as nossas academias insistam em seguir o modelo exterior, não é mais necessário que o trabalho antropológico consista num esforço temporário de pesquisa, seguido pela elaboração de uma tese, a partir da qual se vai extrair por muitos anos o material empírico para se elaborar ideias e teorias dos mais diversos matizes e satisfazer todos os gostos de moda. No Brasil, o material empírico está
a algumas horas de voo, no máximo a poucos dias de barco; está nos arrabaldes das cidades, nos hospitais e casas de saúde, nas faculdades públicas e mais frequentemente nas privadas, viajando para reuniões em Brasília e no exterior, e nos corredores do Congresso Nacional. Está hoje, como esteve ontem, nos escritos e nos relatos de muitos indigenistas, antropólogos e índios – e estará amanhã. Tal realidade se sobrepõe com muito dinamismo à estratégia de pesquisa de estudiosos de outros países. Quantos não têm sido os antropólogos que já vêm ao Brasil sonhando em ser os primeiros a estudar um determinado povo, desprezando o conhecimento anterior, mesmo que fosse elaborado pelos cânones da metodologia oficial, e voltaram aos seus países pensando e aspirando que fossem os últimos, por bem ou por azar? Depois, os seus pesquisados vêm à luz da realidade brasileira e queixam-se: o que falaram deles não é exatamente assim ou não tem sido mais por muito tempo. O conhecimento sobre a estrutura de uma sociedade se refaz em virtude tanto do tempo mutável em que foi adquirido, quanto da própria mutabilidade desta estrutura. A estratégia hiperdialética do conhecimento é, portanto, um princípio metodológico, o conhecimento de uma realidade e a realidade do conhecimento.

Nesses tempos sentimo-nos seguros de anunciar que a antropologia indígena brasileira pode ousar mais no conhecimento e na ação sobre a realidade brasileira, sem sentir-se compungida a buscar fórmulas de conhecimento em outras plagas. Não, quiçá, por virtudes próprias, mas pela realidade cultural e política que se lhe impõe. 

Mas isso não vem de agora, como uma mutação. Existe uma tradição na antropologia brasileira que dá raízes e mantém uma linha de continuidade. O pioneiro inigualável dessa tradição é o alemão naturalizado brasileiro, Curt Nimuendajú (1883-1945), que viveu 40 anos de sua vida percorrendo praticamente todo o território brasileiro, conhecendo pessoalmente quase todos os povos indígenas da época, lendo e pesquisando com rigor livros etnográficos e históricos, perscrutando os arquivos brasileiros, batalhando incessantemente pela causa indígena que abraçara com tanto ardor e comprometimento, a ponto de quase virar índio, de se naturalizar brasileiro com sobrenome indígena, sem, no entanto, deixar de registrar as mais preciosas informações sobre esses povos e suas histórias, de elaborar análises e interpretações das mais férteis que existem na historiografia indígena. Quando morreu, em 1945, numa aldeia dos índios Tikuna, no alto Solimões, Nimuendajú deixava um rico e precioso acervo de obras, a maioria das quais permanece inédita no Brasil, sob a guarda, há tanto tempo, do Museu Nacional. Suas monografias sobre os índios Guarani, Xerente, Timbiras, Apinajé e Tikuna e o seu Mapa Etno-Histórico do Brasil e Adjacências11 constituem alicerces do conhecimento antropológico sobre os povos indígenas, fundamentam uma metodologia especial e representam a figura excepcional de um intelectual engajado.12

O outro pilar da antropologia indígena é também teuto-brasileiro. Trata-se do professor Herbert Baldus. Embora Nimuendajú tenha pesquisado com afinco a história indígena, foi Baldus, no Museu Paulista, quem se dedicou à tarefa de agregar e sistematizar as fontes da etno-história indígena, produzindo uma obra de grande vulto: Bibliografia crítica da etnologia brasileira (1954-1968).13 Praticamente tudo que está publicado sobre índios até então se encontra nessa obra, comentada e indexada. Tanto Baldus quanto Nimuendajú são pioneiros em inserir o índio nos contextos históricos que o envolvem não de uma forma ilustrativa, como se fazia na antropologia praticada na época, mas como parte integrante, perdendo e reagindo, se extinguindo, fugindo ou transformando-se em função de uma dinâmica cultural própria e por força das compulsões que sofria. Essa forma de pensar a antropologia tem um exemplo notável no trabalho de Florestan Fernandes sobre os índios Tupinambá, realizado em duas etapas entre 1949 e 1952. Nos livros A organização social dos índios Tupinambá e Função social da guerra na sociedade Tupinambá, e em outros artigos, os Tupinambá são interpretados academicamente pelo viés funcionalista, porém, de fato, por uma metodologia histórica de grande força dinâmica, na qual as diversas instituições sociais desses índios são analisadas por suas estruturas próprias e pela totalidade que formam em si e em confronto com outras totalidades sociais externas,
inclusive a vinda dos portugueses e franceses. Por outro lado, essas obras provam cabalmente que os Tupinambá não foram passivos à chegada dos invasores, mas reagiram valorosamente, sendo derrotados por motivos que veremos mais adiante.14

Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão são os dois grandes antropólogos que consolidam essa tradição Nimuendajú/Baldus nas suas pesquisas e na sua dedicação à causa indígena. Ambos trabalharam no Serviço de Proteção aos Índios, ao lado do venerando Marechal Rondon, organizando e fomentando o estudo empírico, a documentação histórica e cinematográfica e o conhecimento sistemático sobre os índios, e sugerindo novos modos e práticas indigenistas. Darcy Ribeiro passou dez anos no SPI (1948-57), pesquisou as culturas e os relacionamentos interétnicos dos índios Xokleng, Kadiwéu, Bororo, Urubu-Kaapor e outros mais, fundou o Museu do Índio, dedicado à luta contra o preconceito
indígena no Brasil, e elaborou os argumentos para a criação do Parque Indígena (antes Nacional) do Xingu, marco do indigenismo brasileiro da década de 1950, colocando a defesa do índio em aliança com a preservação da natureza e do patrimônio ambiental da nação como um todo. O seu trabalho no spi, como o de outros intelectuais, aglutinava os esforços do intelectual e do político, do pensador e do administrador, não fazendo distinção valorativa entre o antropólogo e o indigenista. Eis a razão da fertilidade do indigenismo lato sensu àquela época, ganhando o reconhecimento da Unesco, da Organização Internacional do Trabalho (oit), inclusive pela segunda indicação de Rondon ao prêmio Nobel da Paz e a utilização de muitos conceitos do indigenismo brasileiro nos seus dois principais documentos sobre direitos dos povos indígenas, as convenções 107 e 169. A Convenção
169, de 1989,15 dá um grande salto de valorização dos povos indígenas no panorama mundial, acompanhando a consciência universal da sobrevivência e da consequente permanência do índio no mundo. Incorpora as experiências de autonomia indígena em muitas partes do mundo e, na minha visão, toma emprestado, sem reconhecê-lo, muito
da atitude pró-indígena contida no Estatuto do Índio, de 1973, promulgado pelo governo Médici (1969-1974), porém influenciado direta e indiretamente por antropólogos e indigenistas comprometidos com a questão indígena, e por juristas partidários da visão do indigenato16 na história do Brasil.17 Com a Funai (criada para substituir o spi em 1967), a unidade do pensador com o ativista vai ser quebrada propositadamente pelos militares, como tática de manipulação da opinião pública e das forças pró-indígenas no país, para ser recuperada ao fim do período ditatorial brasileiro, redimindo o papel da Funai.

A principal obra antropológica de Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, concebida e parcialmente escrita na década de 1950, mas publicada em 1970, constitui a mais importante síntese interpretativa do conhecimento até então sobre os povos indígenas e suas relações com a história do desenvolvimento do Brasil no século xx. Sua tese principal
é a de que as culturas indígenas, que podem ser analisadas como parte de um processo evolutivo das sociedades humanas, são autossuficientes e integradas numa lógica própria, e não se diluem em outras culturas, consideradas, sob o ponto de vista produtivo, superiores, embora possam adaptar-se às circunstâncias exógenas e desenvolver instituições que as integrem social e economicamente àquelas culturas e sociedades.
Nesse processo, que pode ser concebido como um diálogo, mas que, em geral, é caracterizado por uma dominação política, as culturas mudam e se transfiguram, criam novas modalidades de ser, mas nunca se assimilam, não se autodestroem. Mas podem ser destruídas.18

A concepção intelectual e a metodologia usada neste livro de grande visão integrativa se situa no âmbito de pensamento daquilo que podemos chamar de paradigma da aculturação, seguindo a concepção do filósofo da ciência Thomas Kuhn. O paradigma da aculturação é
um conjunto variado de ideias, proposições, preconceitos, intuições, análises, teorias, sentimentos e atitudes, que remontam ao Iluminismo, passando pela teoria da evolução, por Darwin, Marx, Durkheim e Malinowski, pelo positivismo e por quase todas as escolas antropológicas, até recentemente, que declara a eventual e inevitável extinção das
culturas e sociedades indígenas diante da inexorável força de expansão da civilização ocidental. As análises e interpretações daquele livro, portanto, pautam-se por esse espírito, como o fazem todos os estudos da época. Entretanto, antes de ser frio ou indiferente, permeia no livro um sentimento de indignação e pesar, de horror e desesperança, que projeta, nas conclusões de cada interpretação elaborada, uma visão de rigor científico mesclado pela insatisfação humanista do autor. Nesse contexto, pode-se compreender a formulação do conceito de transfiguração étnica, isto é, de que as sociedades indígenas não se assimilam nem se aculturam, mas se recriam em novas sínteses culturais, como
uma tentativa do autor de transcender à camisa de força do paradigma da aculturação. Por ele, é refutada a inevitabilidade da extinção, são sugeridas formas de acomodação e denominação política, econômica e cultural da sociedade dominante (brasileira) sobre a dominada (indígena), e espera-se uma melhor sorte, de algum modo, para os índios. O livro, ao usar esse conceito como espinha dorsal, ganha um sentido de prospectiva de grande alcance, sinal de que captava indícios da reversibilidade histórica na demografia indígena. Porém, o conceito de transfiguração étnica não chegou a ser utilizado por outros antropólogos da época. Outras correntes teóricas, outras temáticas que também se enquadram na tentativa de explicar as novas condições de sobrevivência étnica iriam
dominar as últimas décadas do século passado e a primeira deste século.

Eduardo Galvão foi um grande pesquisador de campo, um apaixonado pelo seu ofício, tendo começado a fazer pesquisas aos 17 anos, em 1939, quando esteve entre os índios Tapirapé, no rio Araguaia, até praticamente a sua morte, em 1976. Conheceu e estudou dezenas de povos e situações interétnicas, por toda a bacia amazônica, por Mato Grosso e no Maranhão. Escreveu artigos sobre aculturação e mudança cultural, sobre a integração endógena dos índios do alto rio Negro e do alto Xingu, criando a noção de “compressão cultural” para caracterizar esse processo, e dedicou-se ao estudo da produção e difusão de elementos da cultura material, como o propulsor de flechas, a cerâmica e alguns dos principais cultígenos sul-americanos. Pesquisou e engajou-se com o caboclo amazônico, descobrindo no seu sistema cultural e nas suas crenças religiosas uma ligação direta com os povos indígenas de quem descendem. Foi, verdadeiramente, um seguidor de Nimuendajú, temperando sua carreira com uma visão política de larga amplitude e
generosidade. Alguns dos seus artigos foram editados postumamente com o título Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Um dos mais influentes é o que classifica os povos indígenas brasileiros por áreas culturais, um conceito criado pela antropologia norte-americana que buscava compreender a similitude de culturas que têm histórias e
gêneses linguísticas diferentes. Propôs 11 áreas culturais para o Brasil, utilizando-se de critérios diversos, como tipo de cultura, relacionamento intraétnico, compressão cultural, adaptação ecológica e contato externo. Publicou o seu estudo sobre o caboclo amazônico em Santos e Visagens e, junto com Charles Wagley, uma monografia sobre os índios Tenetehara (regionalmente conhecidos como Guajajara) intitulada Os índios Tenetehara: uma cultura em transição. Galvão foi também pesquisador do Museu Nacional, onde iniciou sua carreira, e do Museu Paraense Emílio Goeldi; ajudou a implantar, com Darcy Ribeiro, no Museu do Índio, o primeiro curso de pós-graduação em antropologia no Brasil, e depois fundou e foi diretor do Instituto de Ciências Humanas da recém criada Universidade de Brasília, de onde saiu cassado em 1965.19 

Para os nossos propósitos aqui, reconhecemos a importância de Galvão, sobretudo porque foi ele o primeiro antropólogo brasileiro e certamente um dos primeiros no mundo, a pôr em dúvida a inexorabilidade do processo de extinção dos povos indígenas, ao repensar a conclusão que fizera, com Charles Wagley, sobre o destino dos índios Tenetehara. Eis como analisa a questão, em 1955, na introdução brasileira ao livro originalmente publicado em inglês em 1949, baseado em pesquisas feitas entre 1941 e 1945.

Concluímos com a afirmação de que dentro do espaço de vida de
uma geração, ou pouco mais, o processo de mudança dessa cultura tribal
indígena para uma regional, brasileira, estaria em vias de se completar.
Afirmação esta que tem valido algumas críticas. Umas que a consideram
otimista, outras que põem sérias dúvidas sobre a possibilidade de
realizar-se o processo assimilativo. As dúvidas têm fundamento. Muitas
tribos indígenas existem, até o presente, que têm resistido, e nada indica
que não resistirão no futuro, ao processo de integração à comunidade
brasileira. Em muitas situações de contato, a resultante não se traduz
em assimilação do tipo que descrevemos para os Tenetehara, mas em
despovoamento, em desmoralização da sociedade indígena que, não resistindo
ao traumatismo de uma situação adversa, se decompõe. A brutal
diminuição da população indígena, hoje reduzida a cerca de 100.000
indivíduos, é um exemplo. Outras tribos, graças a um mínimo de condições
favoráveis, mantêm cultura e organização próprias, embora com
muitos elementos modificados pela influência de brasileiros. É preciso
estudar os casos especiais de resistência e os de assimilação.20

À sua brilhante intuição, Galvão logo adiciona uma proposta de temáticas de estudos: assimilação e resistência. Até a década de 1970, a maioria dos estudos de relacionamento interétnico seria sobre assimilação ou aculturação, embora sob perspectivas mais críticas, com conteúdo histórico e sociológico de maior densidade do que os clássicos estudos sobre aculturação e mudança social da antropologia anglo-americana. Depois viriam a ser sobre os processos de resistência e sobrevivência étnica, em que os índios são vistos em princípio como vitoriosos, ou, pelo menos, não como perdedores indefectíveis.

Roberto Cardoso de Oliveira, um dos primeiros estudantes do curso de antropologia do Museu do Índio, foi um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento de estudos, pessoais ou por influência como professor, tanto dos temas de assimilação e acaboclamento – os quais denominou “estudos de fricção interétnica” –, como, após 1972, pelo tema da resistência, através da introdução, no país, da discussão sobre o conceito de identidade étnica, como fator de resistência e sobrevivência dos povos indígenas.21 Esse conceito serviu de fundamento básico para diversos estudos sobre sociedades indígenas e mesmo sobre outras minorias no país, como comunidades rurais, negras ou caboclas, minorias culturais e sexuais urbanas, movimentos sociais e políticos etc.22 Cardoso de Oliveira prosseguiu em sua carreira trazendo temas diversificados que estavam na moda nos países centrais da antropologia, tais com a análise de identidade étnica por ênfase metodológica nas interações sociais (não mais cultural) e o multiculturalismo, ambos com pertinência à temática indígena. Um dos seus estudantes, João Pacheco de Oliveira, depois de fazer uma revisão do estudo de seu mestre sobre a integração dos índios Tikuna à sociedade de classes, e vendo que aqueles índios continuavam a ser índios, embora com mudanças culturais, abre uma nova senda de pesquisas sobre a situação étnica e social dos índios do Nordeste, precisamente aqueles que mais tinham sofrido a opressão luso-
brasileira e ainda mantinham teimosamente sua identidade indígena. Sua grande contribuição aos estudos sobre populações indígenas, com consequências políticas positivas ao indigenismo brasileiro, foi a aplicação da noção de “etnogênese”, trazida da antropologia inglesa sobre a urbanização de populações tribais na África. Expungindo a verborragia do filósofo Gilles Deleuze, utilizada por Pacheco, que aplica o termo “territorialização” para significar os modos de formação de identidades, entende-se por etnogênese o processo de reaglutinação de comunidades de pessoas que vivem um destino comum em torno de uma visão de identidade própria, separada da identidade cultural corriqueira das pessoas antes vizinhas, a partir de então caracterizadas como fora do novo grupo autorreconhecido. Uma nova identidade se forma a partir da memória de um passado, em geral com aspectos históricos, mas também religiosos e míticos, que relembra aos novos membros uma visão mais generosa de sua vida pregressa e uma promessa de uma vida melhor a partir da nova identidade. 

Com essa atitude, e ajudados por associações de indigenistas e de religiosos católicos, com suporte do órgão indigenista e do Ministério Público Federal (MPF), diversos grupos de caboclos nordestinos e de ribeirinhos amazônidas alçaram-se em movimentos de constituição de novas identidades e, ademais, de reconhecimento por parte das autoridades, tais como os órgãos indigenista, de saúde e educação indígenas, o MPF e outros, dessa identidade. O que os motiva é, em essência, a vontade de uma nova identidade fora da corriqueira identidade de gente rural pobre e destituída, mas é, complementarmente, a segurança de uma maior proteção econômica e oportunidades
sociais que a identidade indígena bem ou mal lhes proporciona.

Com uma ênfase maior no aprofundamento da análise histórica, em que os povos indígenas são interpretados como totalidades histórico-político- culturais, agindo e reagindo ao contato externo por compulsionamento e por consciência parcial da sua realidade, foram desenvolvidos estudos que demonstram a qualidade da fusão que deve haver entre a
sensibilidade histórica, o senso do real e a ansiedade do imaginado, isto é, entre o historiador, o político e o cientista. O livro Índios da Amazônia: de maioria a minoria, e seu livro sobre a política indigenista do Império, Os índios e a ordem imperial, de Carlos de Araújo Moreira Neto, são exemplos dessa contínua busca de adaptação metodológica e criação teórica para explicar o universo empírico da antropologia brasileira atual.23 Antes de ser publicado, esse texto foi passado de mão em mão em caderno mimeografado como estudo exemplar e pioneiro da história do Brasil focada na questão indígena. Nele constam análises eruditas dos dados encontrados nos relatórios dos presidentes de província de todo o Brasil, demonstrando não somente os meios e políticas abertos e escusos que levavam a elite imperial e os novos “bandeirantes”, criadores de gado, comerciantes das novas cidades a açambarcar as terras indígenas, como explicita a cooperação e a conivência dos novos missionários nesse mister. Ao longo de quase setenta anos de independência, o Brasil arrefeceu pouco o legado que recebera dos portugueses.

Nessa linha de abordagem, mas com uma perspectiva localizada e menos pessimista, situo o meu livro sobre a etno-história dos índios Tenetehara, O índio na história: a saga do povo Tenetehara em busca da liberdade. Fruto da minha primeira pesquisa com esses índios, que redundara numa tese de doutorado, esse livro me levou 23 anos para ser concluído, durante qual tempo voltei diversas vezes a aldeias teneteharas e pesquisei em arquivos os mais evidentes como a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, o Arquivo Público do Pará, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, até os arquivos paroquiais de pequenas cidades
do Maranhão, como Viana, Pindaré-mirim e Godofredo Viana. Esse livro procura demonstrar que a história indígena não é tão linear quanto pareceria, tão inexoravelmente declinante, havendo momentos de relacionamento mais fluido e outros mais agressivos, momentos de opressão e momentos de cooperação; que há fissuras no controle social sobre os índios, e, sobretudo, que os índios reagiram à opressão, às vezes pela rebelião e fugas, outras pela estratégia da convivência próxima ou distanciada. Os índios, concluo, buscam a volta ao seu status quo ante, sonham e fantasiam com a época em que reinavam soberanos, com os
tempos da liberdade e igualdade de condições com seus adversários. 

Nas décadas de 1980 e 1990, deu-se um florescer de estudos etno-históricos por antropólogos e historiadores, aqui destacados no livro editado pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, História dos índios no Brasil.24 Não restam dúvidas de que a antropologia brasileira, no que concerne ao estudo das relações interétnicas, alcançou um nível de descrição, análise e interpretação bastante rigoroso. Nos últimos quarenta anos
foram produzidas dezenas de teses com temática indígena, largamente baseadas em pesquisa de campo, algumas demonstrando conhecimento da língua indígena, alcançando um excelente nível de qualidade etnográfica. Ressalvadas as proporções nas grandezas étnicas, a antropologia brasileira se compara com a antropologia mexicana, até pelo seu aspecto do compromisso político com o seu objeto de estudo. Se ainda nos falta uma gama mais extensa de etnografias, cobrindo o espectro das culturas indígenas, isso se deve aos seguintes aspectos: preocupação do antropólogo-cidadão brasileiro com os estudos que valorizem o conhecimento das possibilidades de sobrevivência dos índios; deficiência acadêmica ao não enfatizar estudos linguísticos como base para a compreensão
das culturas indígenas; falta de estímulos institucionais e financeiros dos centros de pesquisa; contradições políticas e tensões culturais surgidas nos últimos quarenta anos que dificultam a permanência mais prolongada de antropólogos entre os índios. As pesquisas etnográficas acontecem muitas vezes motivadas por temas teóricos de curto fôlego, mas que viram uma espécie de moda. Dezenas de teses e artigos foram produzidos sob inspiração de uma temática menor proposta por Lévi-Strauss no seu portentoso livro sobre o parentesco, As estruturas elementares do parentesco, por sua vez um recorte reducionista desse grande tema antropológico inventado ainda no século xix, pelo pioneiro da antropologia Lewis Henry Morgan. Tratava-se de demonstrar que os sistemas sociais dos povos indígenas das chamadas terras baixas da América do Sul – que incluem todo o Brasil e mais as vertentes orientais dos países andinos – se baseiam na rivalidade entre primos cruzados, isto é, entre os primos que são filhos de uma irmã e de um irmão, potencialmente
parceiros casadoiros, ao contrário dos filhos de dois irmãos do mesmo sexo (neste caso, chamados de primos paralelos e que se consideram irmãos entre si). Com tal foco e com um malabarismo intelectual digno de admiração, esses trabalhos terminavam relevando todo
o mais do sistema de parentesco, da liturgia do poder, da relação do sistema sociopolítico indígena com o mundo de fora, e da sociabilidade dessas sociedades.

Em contrapartida, a maior carência da antropologia brasileira em relação a estudos sobre sociedades indígenas diz respeito às economias indígenas e à relação delas com o mundo circundante. Todo mundo que trabalha com índios sabe que raros são os casos de economias indígenas autossuficientes. Naturalmente, quando viviam para si, autônomas, essas sociedades produziam o suficiente para sobreviver, sempre com algum excedente para os momentos de carência, como uma safra perdida por falta de chuvas no tempo certo ou destroçada por uma vara de porcos queixada. Porém, o convívio com a sociedade brasileira produz novas necessidades, desde o simples sal, passando por panelas, facões, roupas, calçados, chegando a rádios, fogões, geladeira, televisão, e, agora, computadores
e objetos de adorno, todos os quais custam dinheiro. Como obter esses objetos? Nos casos mais simples, há doações por parte da Funai ou de outras instituições. Mas o limite de doações logo é alcançado, enquanto o desejo de ter mais e mais variado é bastante elástico. Cabe saber como as economias podem se desenvolver de dentro para fora,
encontrar bens e produtos que podem ser vendidos e aumentar sua produtividade, sem transformar suas sociedades em sistema de produção.

Nessa carência de conhecimento há uma imensa falha da antropologia brasileira.25 Por fim, compele reconhecer que uma parte de nossa lacuna etnológica é preenchida pelas teses de pesquisadores estrangeiros, cuja preocupação maior se focaliza em temas como cultura, organização política, relação com meio ambiente etc., não no seu relacionamento
interétnico, devido, certamente, à sua própria condição de estrangeiro e de necessidade de voltar a seus países para seguir suas carreiras. Não podemos deixar de mencionar aqui, ainda que brevemente, os estudos de arqueologia brasileira. Há efetivamente uma tradição arqueológica brasileira que discute grandes temas relacionados à presença do homem nas Américas, e no Brasil em particular, com adaptações culturais a todos os meios ambientes do nosso território, com as mudanças de sistemas econômicos e sociais entre sociedades indígenas. Inclusive, há demonstrações de que no passado já houve sociedades mais densas demograficamente e poderosas politicamente. 

Em sua grande maioria, o interesse antropológico cientificamente relevante trata de conhecer o passado pré-colombiano das sociedades indígenas, ainda que haja bons
estudos sobre como os índios viveram nas missões ou em terras de onde foram expulsos já em tempos recentes. Enfim, há dezenas de povos indígenas brasileiros que precisam ser
conhecidos mais intimamente, pelo que pensam do seu mundo, pelo que produzem de conhecimento, por seus modos de viver e, sem dúvida, pelas suas perspectivas de continuidade étnica. O trabalho de produzir monografias (que é um dos polos fundamentais do conhecimento antropológico) não tem necessariamente de ser feito nos moldes tradicionais concebidos e estilizados no início do século xx. Faz-se necessário que se incorporem na própria metodologia do trabalho as condições políticas e culturais do Brasil e da tradição antropológica brasileira, e que essa metodologia se conceba como um instrumento integrativo da história e da estrutura, tanto nas análises sobre as relações interétnicas que determinado povo tem com o mundo envolvente, quanto nas análises e teorizações sobre a própria cultura estudada. Uma monografia não precisa ser descritiva e estática, nem se pautar pela busca obsessiva de novidades etnográficas – uma verdadeira mania da antropologia enquanto disciplina acadêmica, a qual, muitas vezes, resulta na impossibilidade de aferição dos dados pelo que eles vêm a ter de exótico e esdrúxulo. A singularidade de culturas e povos deve ser compreendida como parte da diversidade humana, o que implica também o tema da comparação e de sua universalidade. Se concebermos a cultura como uma relação humana tanto consciente quanto inconsciente, regida pelo social e pelo individual, e se localizarmos essa dialética numa perspectiva
histórico-estrutural, de envergadura hiperdialética, com um sentido de continuidade cultural, transcenderemos as teorias que reduzem os povos indígenas, necessariamente, a seres inferiores, dominados por formas de pensamento baseado em preceitos imutáveis e sem história.

O presente livro não trata de expor as bases teóricas da antropologia hiperperdialética, já abordada no meu livro homônimo. A exposição e discussão da temática indígena, tratada como uma questão de interesse mais amplo do que normalmente se concebe na antropologia tradicional, é orientada pela visão hiperdialética. Por ela, o índio – ou as sociedades, culturas e povos indígenas – é concebido um ser único, em si e para si, que se opõe a outras entidades semelhantes, formando relações de convivência ora amistosas ora confrontantes, em círculos e contextos cada vez mais amplos. É dizer, os índios são seres que estão na história, pois mantêm suas culturas por decisão própria, semelhantemente a outros povos e culturas. São parcialmente tanto conscientes quanto inconscientes de suas potencialidades, virtudes, carências, desequilíbrios e destino. Em relação direta com a sociedade brasileira forma-se uma temática própria, de cunho político, uma questão. Definimos essa questão como o conjunto dos povos indígenas e das forças que os envolvem, formando uma estrutura de relações num eixo temporal, e obtendo o seu sentido
pela luta interna, pela reflexão consciente e por suas conexões com a amplitude dos povos e culturas de todo o mundo. O índio, assim, é compreendido por si e em relação com o todo. A explicação para a sua sobrevivência ou o seu extermínio advém desse princípio metodológico.

Na relação com o mundo, o índio toma autoconsciência de sua existência mais ampla e age, ao modo possível que lhe é dado, para se entender com a nova realidade. Perder ou ganhar, não se pode saber; importa é que vive na luta por sua continuidade e ascensão político-cultural.

O escopo de meu trabalho é a história indígena, suas derrotas e perdas, mas também suas pequenas, porém significativas, vitórias e ganhos. Abordo essa história a partir de dois pontos de vista – do índio e da civilização brasileira –, com enfoque para a opinião que temos a respeito do índio, o que este pensa sobre o Brasil, seu presente e sobre suas perspectivas futuras. Este livro é impregnado, necessariamente, pelos sentimentos da indignação e do inconformismo. Mas quer alentar também um rasgo de esperança, justificado pelos acontecimentos mais recentes e por novas interpretações históricas que mostram não somente a face negativa, mas também a positiva do tempo presente, e nos auxiliam a divisar as possibilidades do futuro.


Notas
1 A palavra índio é às vezes refutada em discussões acadêmicas, porque parece generalizar e,
consequentemente, ofuscar a diversidade das identidades e culturas indígenas. Essa cautela me
parece exagerada. É evidente que os índios são diversos, mas, na história da formação brasileira,
essa categoria social é fundamental para a sua compreensão. Os índios se veem diferentes uns
dos outros, mas semelhantes em confronto ou contraste com a sociedade brasileira em geral. Por
outro lado, não se incomodam de serem chamados de índios, mesmo sabendo que esse termo
nasceu de um engano de Cristóvão Colombo.

2 A demografia indígena em 1500 é motivo de diversos estudos, cálculos e especulações. Um resumo
pode ser encontrado em John Hemming, Red Gold: The Conquest of the Brazilian Indians,
1500-1760, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1978. O próprio Hemming considera
especulativo o número que propõe: 2.400.000. O número arredondado de cinco milhões é produto
de várias suposições. No capítulo “Do ponto de vista do índio” explicamos como chegamos a ele.
Outros autores já propuseram números que vão de 800 mil (ver a análise de Julian Steward, Native
Peoples of South America, New York, McGraw-Hill, 1959, pp. 51-60) a um número projetado que
certamente excederia os dez milhões (Pierre Clastres, “Elementos da demografia ameríndia”, em A
sociedade contra o Estado, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978). O menor número é subestimado
por desconhecimento e descrença quanto às descrições e cifras apresentadas pelos cronistas e
missionários dos séculos xvi e xvii. Hoje em dia, essas descrições são mais acatadas e levadas
em consideração. A dificuldade maior está em saber quantos povos, quantas unidades políticoculturais
existiam. No capítulo “O que se pensa do índio” discutiremos os diversos critérios de se
avaliar essa questão. Se correlacionarmos língua específica com unidade política, o número pode
variar em torno de 2.500 a cerca de 340. Ver J. Alden Mason, “The Languages of South American
Indians”, em Handbook of South American Indians, New York, Cooper Square Publishers, 1963,
v. vi, p. 163, que calcula um número de 5 mil línguas/povos para toda a América do Sul. Curt
Nimuendajú no seu Mapa Etno-Histórico (Rio: ibge, 1982), soma 1.400 povos; Chestimir Loukotka,
“Línguas Indígenas do Brasil”, em Revista do Arquivo Municipal, v. 54, 1939, São Paulo, soma
237 línguas para o Brasil. Aryon Dall’Igna Rodrigues, em Línguas brasileiras, São Paulo, Loyola,
1986, identifica 170 línguas atuais e projeta o dobro como um número mínimo de línguas indígenas
em 1500. O número atual de 890 mil índios advém do Censo 2010, do ibge. Desses, 510 mil
estariam vivendo em terras indígenas ou em zona rural, enquanto 370 mil morariam nas cidades.
O número e os nomes das etnias a que essas populações se filiariam ainda não foram publicados.
O ibge publicou intempestivamente que seriam mais de 305 nomes étnicos, muito acima
dos nomes de etnias reconhecidos pela Funai. Na primeira edição deste livro, dados do Cimi, de
1987, somavam 230 mil índios distribuídos em 220 etnias, com a população crescendo cerca de
4,5% para os anos de 1986 e 1987. Já o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi)
dava, em publicação sobre terras indígenas, um total de 213 mil índios. Ver Cimi, Mapa “Povos
Indígenas no Brasil e Presença Missionária”, 1985; Cedi/Museu Nacional, Terras Indígenas no
Brasil. São Paulo: Tempo e Presença, 1987. Ver, também, Funai, Situação das Terras Indígenas
do Brasil: Dados Estimativos. Brasília, 1984, que apresenta um número incompleto de 166.417.

3 Por convenção estabelecida pelos antropólogos e linguistas brasileiros, desde 1953, os gentílicos dos
povos indígenas sempre escrevem-se em letras maiúsculas. São grafados no singular, a não ser que
sejam palavras portuguesas. O único caso em que ficam em letras minúsculas é quando são usados
como adjetivos. Assim, escreve-se “os Munduruku”, mas “as vestimentas mundurukus”; “os índios
Cintas-Largas”, e “os arcos cintas-largas”. Ver Revista de Antropologia, v. 2, n. 2, pp. 150-152, 1954.

4 Há uma extensa bibliografia sobre essas questões, da parte de mexicanos, peruanos, norteamericanos
e europeus. De fácil acesso a brasileiros e de grande influência na América Latina,
ver o livro de Darcy Ribeiro, As Américas e a civilização, Petrópolis, Vozes, 1977. Ver também
Leopoldo Zea, América en la História, México, Fondo de Cultura Económica, 1957.

5 Esse regimento continha os planos e as recomendações do rei D. João ii para a colonização do
Brasil. Uma seleção de trechos pertinentes aos índios pode ser encontrada no livro de Georg
Thomas, A política indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640, São Paulo, Loyola, 1982. A
nossa discussão desse regimento e das outras leis e regulamentações indigenistas encontra-se no
capítulo “Políticas indigenistas”.

6 As propostas contidas nesse texto foram primeiramente apresentadas nas Cortes Gerais de Lisboa.
Em 1821, junto com algumas outras de representantes brasileiros – como Francisco Muniz Tavares,
de Pernambuco; Francisco Ricardo Zane, do Pará; e Domingos Borges de Barros, da Bahia –,
visavam equacionar o problema indígena com o Estado luso-brasileiro. Muniz Tavares e Borges de Barros tinham, assim como José Bonifácio, propostas de “civilizar” os índios. Já Francisco
Ricardo Zane, que havia sido um ano antes o guia administrativo dos cientistas alemães Carl
von Martius e Johann Baptist von Spix, pelo rio Amazonas e seus afluentes, e representava os
interesses mercantis da região, propunha métodos de escravização ou de erradicação dos índios.
A Assembleia Constituinte de 1823 rejeitou as propostas de José Bonifácio, as quais, de qualquer
modo, foram anuladas pela revogação dessa Assembleia e pela imposição de uma Constituição
pelo novo imperador. Seja como for, as ideias de integração dos índios como parte da nação
brasileira permaneceram na consciência liberal nacional e foram posteriormente de grande
importância para a consolidação de uma atitude positiva em relação a eles. Compare esse fato,
por exemplo, com a situação indígena nos Estados Unidos da América nessa mesma época, que
decretara, em 1828, a exclusão de todos os povos indígenas que viviam na costa leste para além
do rio Mississipi. Ver Carlos de Araújo Moreira Neto, “A Política Indigenista Brasileira durante o
século xix”, Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, São Paulo,
1971. Essa tese é fundamental para se compreender a política indigenista do Império e contém
muitas informações sobre os períodos históricos imediatamente anteriores e posteriores.

7 Ver Carl F. von Martius, “Como se deve escrever a História do Brasil”, em Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, ano VII, n. 24, janeiro de 1845. Ver, do mesmo autor, em publicação
mais recente, O estado do direito entre os autóctones do Brasil, Coleção Reconquista
do Brasil, Nova série, v. 58, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1982. Sobre os textos de
Varnhagen e Von Ihering, ver os capítulos “Políticas indigenistas” e “O que se pensa do índio”.

8 Sobre a Argentina, ver Guillermo R. Ruben, “Les Mapuches: l’Illusion de l’Indianité”, Tese de
Doctorat D’Etat, Universidade de Paris, 1980. Os números estimados de índios massacrados nessa
expedição e na seguinte, de 1880, totalizam 23 mil guerreiros. Sobre os Estados Unidos da América,
ver, por exemplo, Wilbur Jacobs, Dispossessing the American Indian: Indians and Whites on the
Colonial Frontier, New York, Charles Scribner’s Sons, 1972; Harold E. Driver, Indians of North
America, Chicago e London, The University of Chicago Press, 1969. Sobre a Colômbia, ver Marino
Baleazar Pardo, Disposiciones sobre Indigenas Baldios y Estados Antisociales (vagos, maleantes y
rateros), Popayán, Universidad Popayán, 1954. Ver também Alfonso Uribe, Misas, Las Misiones
Catolicas ante Ia Legislación Colombiana y el Derecho Internacional Público, Bogotá, Lumen
Christi, a/d. Sobre a Venezuela, ver Nelly Arvelo de Jimenez, “Análisis del Indigenismo oficial
en Venezuela” e Esteban E. Mosonyi, “La Situación del Indígena en Venezuela: Perspectivas y
Soluciones”, respectivamente, pp. 31-42 e 43-63, em Georg Grünberg (coord.), La Situación del
Indígena en América del Sur, Montevideo, Tierra Nuova, 1971.

9 Estar no cerne não significa estar na vontade nem no discurso oficiais. Nem é necessariamente
um sentimento positivo. Quer dizer apenas que é motivo constante e atual de reconhecimento,
mesmo que seja negativo.

10 Sobre a visão hiperdialética em antropologia, ver meu livro Antropologia hiperdialética, São Paulo,
Contexto, 2011.

11 Para visualizar melhor esse mapa, ver: http://biblio.wdfiles.com/local--files/nimuendaju-1981-mapa/
nimuendaju_1981_mapa.jpg. Acesso em: 24 set 2012.

12 A vida e obra de Curt Nimuendajú, inclusive a sua bibliografia publicada, estão resumidas no livro
Textos indigenistas, São Paulo, Loyola, 1982, editado por Paulo Suess e com prefácio de Carlos
de Araújo Moreira Neto.

13 O primeiro volume foi editado em São Paulo pela Comissão do iv Centenário da Cidade de São
Paulo, 1954. O segundo, que engloba o primeiro, foi editado na Alemanha pela Kommissionsverlag
Münstermann Druck gmbh, Hannover, 1968. O terceiro volume foi compilado pela antropóloga
Thekla Hartmann e publicado em Berlim por Dietrich Reimer Verlag, 1984.

14 Florestan Fernandes, A organização social dos índios Tupinambá, São Paulo, Instituto Editorial
Progresso, 1949 (2. ed. Difusão Europeia do Livro, 1963); A função social da guerra na sociedade
tupinambá, São Paulo, Editora Revista do Museu Paulista, 1952 (2. ed., São Paulo, Livraria Pioneira,
1970); Investigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Petrópolis, Vozes, 1975.

15 A Convenção 107 se chama Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais, enquanto a Convenção
169, refletindo o novo caráter de reconhecimento dos povos indígenas, chama-se Convenção
sobre os Povos Indígenas e Tribais. Uma compilação de grande parte da legislação sobre os índios
brasileiros ou sobre temas que lhes dizem respeito, dos últimos 70 anos, pode ser encontrada
no livro organizado por Edvar Magalhães, Legislação indigenista brasileira e normas correlatas,
2. ed., Brasília, Funai/cgdoc, 2003.

16 Por indigenato compreende-se a visão jurídica segundo a qual a legislação colonial portuguesa
reconhece o caráter originário da presença indígena no território brasileiro, cujos direitos sobre
as terras que ocupam antecedem quaisquer outros direitos posteriores.

17 Vale aqui comentar brevemente que uma parte expressiva dos antropólogos brasileiros foi influenciadapela visão pós-moderna do filósofo Michel Foucault em relação ao poder como entidade
onipresente e onisciente nas relações humanas. Na aplicação dessa teoria do poder, a política
indigenista de Rondon é interpretada como tendo por propósito fundamental ganhar poder sobre
os índios, controlá-los e diminuir seus territórios, circundá-los num “cerco da paz”, mudar suas
culturas – tudo para abrir caminho à expansão econômica do Brasil. A história brasileira, vista
sob essa ótica, congela o sentido das relações humanas na atualidade e assim é interpretada no
contexto do presente. Aqueles que não fizeram no passado o que é exigido que seja feito no
presente viraram motivos de opróbrio e condenação. Assim, toda a história do Brasil se torna um
desenrolar de acontecimentos vis, realizados por pessoas vis e indignas do presente. Desafortunadamente
essa visão da história do Brasil, e particularmente da extraordinária saga rondoniana,
inclusive de seus seguidores – como os irmãos Villas-Boas, Francisco Meirelles, Cícero Cavalcanti e
tantos outros sertanistas e indigenistas heroicos que fizeram diferença e hoje se tornaram anônimos
da nossa história –, prevaleceu pelas últimas duas décadas, influenciando toda uma geração de
jovens antropólogos, jornalistas, membros do Ministério Público e outros paladinos da moralidade
nacional, embora já se vejam sinais de seu descrédito. O livro O cerco da paz, de Antônio
Carlos de Souza Lima, é o mais citado por aderentes dessa visão descontextualizada da história.

18 Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1977 (1. ed., Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1970).

19 Eduardo Galvão, Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1979; Santos e visagens, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1955; com Charles Wagley, Os índios
Tenetehara: uma cultura em transição, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1961;
ver a versão inicial inglesa The Tenetehara Indians: a culture in transition, New York, Columbia
University Press, 1949. Sobre Galvão, pessoalmente, ver o prefácio no seu livro de artigos feito
por Darcy Ribeiro. Ver também a análise da obra de Galvão por Orlando Sampaio Silva, Eduardo
Galvão: índios e caboclos, São Paulo, Annablume, 2007.

20 Eduardo Galvão e Charles Wagley, Os índios Tenetehara: uma cultura em transição, Rio de
Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, 1961, p. 10.

21 Roberto Cardoso de Oliveira, O processo de assimilação dos Terena, Rio de Janeiro, Publicação
do Museu Nacional, 1960; “Estudo de áreas de fricção interétnica no Brasil”, em America Latina
v. v, n. 3, pp. 85-90; “Aculturação e Fricção Interétnica”, em América Latina, v. vi, n. 3, pp. 33-45;
O índio e o mundo dos brancos: a situação dos Tikuna do alto Solimões, São Paulo, Difel, 1967;
Urbanização e tribalismo: a integração dos índios Terena numa sociedade de classes, Rio de
Janeiro, Zahar, 1968; Identidade, Etnia e Estrutura Social, São Paulo, Pioneira, 1976.

22 Ver Carlos Rodrigues Brandão, Etnia e Identidade, São Paulo, Brasiliense, 1985, para um balanço
desse conceito.

23 Carlos de Araújo Moreira Neto, Índios da Amazônia: de maioria a minoria, Petrópolis, Vozes,
1988. Os índios e a ordem imperial, Brasília, Editora Funai, 2005.

24 Manuela Carneiro da Cunha (Org.), História dos índios no Brasil, São Paulo, Companhia das
Letras/Fapesp/Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

25 Um excelente exemplo de estudo sobre a relação entre a economia indígena, os impactos da
entrada de dinheiro e as interpretações indígenas sobre essa relação é o livro de Cesar Gordon,
Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin-Mebêngôkre, São Paulo, Editora
Unesp; ISA; Rio de Janeiro, Nuti, 2006.

 
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