sábado, 28 de novembro de 2009

O Índio na História: o povo Tenetehara em busca da liberdade

Eis aqui a resenha feita pelo antropólogo Júlio César Melatti do meu livro O Índio na História: A saga do povo Tenetehara em busca da Liberdade. O livro foi publicado pela Editora Vozes, em 2002.

Esta resenha foi publicada na Revista de Antropologia e estava no site da geocities.com., que deixou de existir. Seu novo site é:


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Sobre o livro O Índio na História — O povo Tenetehara em busca da liberdade, de Mércio Pereira Gomes. Petrópolis: Vozes, 2002. 631 p.


Resenha publicada na Revista de Antropologia 46 (1): 259-269. São Paulo: USP-FFLCH-DA, 2003


Mércio Gomes começou sua pesquisa sobre os Tenetehara (auto-denominação dos índios conhecidos como Guajajara no Maranhão e Tembé no Pará) em julho de 1975 na aldeia de Bacurizinho, onde permaneceu quatro meses, convivendo também com a vizinha aldeia Ipu, ambas próximas às cabeceiras do rio Mearim. Nos dois últimos meses do mesmo ano visitou as aldeias do trecho inferior do rio Pindaré, as dispostas entre os altos cursos de seus afluentes Buriticupu e Zutiua e as próximas do ponto em que o rio Corda entra no Mearim. Também gastou duas semanas a subir o rio Turiaçu, onde conheceu os Guajá e os Ka'apor. Em janeiro do ano seguinte já estava nos Estados Unidos, onde redigiu sua tese The Ethnic Survival of the Tenetehara Indians of Maranhão, Brazil, que defendeu em The University of Florida em 1977, cujas cópias a University Microfilms International, de Ann Arbor, Michigan, pôs à disposição dos leitores em 1986 (n° 78-6699). A tese não se fundamenta apenas no trabalho de campo, pois grande parte dela é dedicada ao exame do desenvolvimento, ao longo do tempo (do século XVII ao XX), das relações dos Tenetehara com a sociedade que se vem formando a partir da conquista européia, o que exigiu uma dedicada pesquisa documental. Para tanto recorre à documentação escrita desde as leis e textos administrativos do período colonial até os dos arquivos dos postos e da sede do antigo SPI e da FUNAI, desde as crônicas de missionários capuchinhos e jesuítas e de naturalistas e outros viajantes até livros e artigos de antropólogos do século XX. Também se valeu das anotações de campo de Charles Wagley (orientador da tese) e Eduardo Galvão (que faleceu um ano antes de sua defesa), autores do clássico Os Índios Tenetehara – Uma Cultura em Transição (MEC, Serviço de Documentação, 1961, tradução do original em inglês de 1949), baseado em pesquisa realizada na década de 1940.
Vinte e cinco anos depois, eis que Mércio Gomes publica o livro que aqui se comenta. Não se trata, porém, da simples tradução de sua tese para o português. Na verdade o texto é reescrito e, mais que isso, ampliado. Os acréscimos são fruto de seu retorno, após a defesa da tese, às aldeias tenetehara, tanto às anteriormente visitadas quanto a outras que ainda não conhecia, quiçá também quando a caminho das aldeias dos Guajá, povo a que mais recentemente tem dedicado especial atenção. Incorpora ainda resultados de mais consulta documental e leitura de recentes trabalhos de outros pesquisadores. Os acréscimos se demoram especialmente na focalização das atividades de antigos e recentes funcionários dos sucessivos órgãos indigenistas e no processo de reivindicação, delimitação e demarcação das terras indígenas.
Para aqueles acostumados à leitura de trabalhos baseados em longa permanência em uma ou duas aldeias, essa móvel e difusa forma de coleta de dados pode parecer estranha. Mas ela é sem dúvida adequada para a análise de um processo multivariado que vem se desenvolvendo por 400 anos e por sobre a vasta extensão de uns 125 mil quilômetros quadrados.
A orientação metodológica da tese se mantém no livro. Já na versão original ela era admitidamente inspirada no primado do econômico e se atinha ao exame da infra-estrutura, justificando-se o autor (na p. 43 de sua tese) com o reconhecimento de que o Charles Wagley e Eduardo Galvão já se haviam ocupado com a super-estrutura em seu já referido estudo. Não obstante o novo prólogo que inicia o livro, esse enfoque permanece.
Duas coordenadas se mantêm ao longo do livro, fazendo-lhe o arcabouço. Uma delas é a periodização temporal em que cada etapa é marcada por um determinado tipo de relação de produção que fundamenta as relações interétnicas. Assim, os Tenetehara são sucessivamente escravos, servos, ignorados, clientes, tendendo recentemente à autonomia. Outra é a distinção de ambientes geográficos, que oferecem diferentes recursos, facilidades e obstáculos à exploração: a floresta amazônica, mais úmida, a noroeste; a mata de transição para o cerrado, mais seca, a sudeste. Essas duas matas não são internamente uniformes e seus rios têm características distintas: o rio Gurupi é mais rico em copaibeiras, a área onde o Pindaré e o Mearim se aproximam é mais alagadiça; o alto Pindaré tinha a navegação dificultada pela erva aquática mururu; o Grajaú, mesmo após as embarcações a vapor ou diesel, só era vencido por remeiros e vareiros.
A flutuação populacional recebe de Mércio Gomes uma atenção constante. Ele calcula para cada período ou região o número de habitantes indígenas, seja fundamentado em documentos, seja em estimativas. O exame desses números é retomado num capítulo no final do livro, e é com satisfação ver o reaparecimento da demografia indígena, ainda que 45 anos após os ensaios pioneiros de Darcy Ribeiro. Surpreende-nos constatar em seu gráfico (p. 521) que a linha que representa a população tenetehara não desce de uma vez em declive acentuado até chegar ao ponto zero dos povos extintos, e nem tem o seu declive sustado pouco antes do zero para retomar uma lenta ascensão, como ocorre com muitos outros, mas é uma linha quebrada com mais de um ápice e mais de uma depressão, que revelam períodos favoráveis e desfavoráveis. Wagley e Galvão os estudaram num período em que saíam de uma dessas depressões, ainda mais acentuada na região que visitaram; Gomes os conheceu em tamanha ascensão que alcançam hoje um número talvez maior que no tempo em que foram encontrados pelos primeiros conquistadores europeus; daí, entre outras razões, os prognósticos desanimadores daqueles etnólogos e o otimismo deste.
Mércio Gomes põe a primeira etapa de sua periodização no início do século XVII, quando os Tenetehara viviam na altura do curso médio do rio Pindaré, no trecho onde desembocam o Caru, o Zutiua e o Buriticupu, em área da floresta pluvial amazônica, estimados em cerca de dez mil pessoas. Logo após expulsarem os franceses do litoral, os portugueses fizeram algumas expedições em busca de escravos no vale do Pindaré, fazendo decrescer acentuadamente a população tenetehara.
A partir dos meados do século XVII, os jesuítas, após visitas que chegam ao âmago do território dos Tenetehara, conseguem convencer uma parte deles a se estabelecerem em aldeamentos missionários. Estes passam por mais de uma mudança de local relacionada à disputa da mão-de-obra indígena com o colonos, firmando-se um no baixo Pindaré no lago Maracu e o outro, de São Francisco Xavier ou Carará, um pouco mais acima. Nessa época, os indígenas que viviam em aldeamentos missionários ou naqueles sujeitos à requisição de mão-de-obra pelos colonos eram nominalmente livres. Mas Gomes tem razão em considerá-los em regime de servidão, pois o trabalho para jesuítas ou colonos, apesar de remunerado, aliás muito mal, era compulsório e os índios não tinham nem mesmo escolha de para quem trabalhar. Os Tenetehara que haviam conseguido se manter nas suas terras é que gozavam de liberdade.
O regime de servidão vai perdurar até meados do século XVIII, quando o governo de Pombal extingue o poder temporal dos missionários, expulsa os jesuítas, liberta todos os índios e transforma os aldeamentos maiores em vilas e os menores em lugares regidos segundo as normas dos núcleos urbanos portugueses. Foi assim que o aldeamento de Maracu foi transformado na vila de Viana e o de São Francisco Xavier, no lugar de Monção. Sem apoio dos jesuítas e envolvidos pelos colonos, os Tenetehara desses aldeamentos irão pouco a pouco definhar como grupo étnico distinto e se confundirem com a população sertaneja. Em compensação os Tenetehara que haviam permanecido nos cursos médio e alto do Pindaré e seus afluentes serão ignorados pelos colonos e irão passar por um período de expansão e crescimento demográfico. Eles se expandem para oeste e noroeste na direção do Gurupi e mais além. E também para o sul e sudeste, para a mata seca de transição, entre a floresta amazônica e o cerrado, nos cursos altos do Pindaré, Buriticupu, Zutiua, Grajaú e Mearim. A razão de ficarem assim esquecidos é porque a região do Maranhão que vai se desenvolver economicamente nessa época são os vales do Itapecuru e do Monim, a leste, com o plantio do arroz e do algodão, feito por escravos africanos, introduzidos pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, cuja criação decorre também de uma iniciativa pombalina. A revogação do Diretório em 1798 e a indefinição da política indigenista que se seguiu, até com medidas retrógradas, como a permissão de escravização temporária de índios em certas região do Brasil, parecem não ter chegado a afetar os Tenetehara, que Mércio Gomes estima terem chegado a somar umas nove mil pessoas, um ápice que quase igualava a sua população no início da conquista européia.
Por volta de 1840, as relações entre os Tenetehara e os brancos começam a ganhar uma nova forma, a de clientes para com patronos. A população sertaneja do baixo Pindaré começa a crescer; no Gurupi entram regatões em busca do óleo de copaíba; pelo sul os criadores de gado avançam, conquistando o cerrado aos Timbira, e chegando à orla da mata de transição. Os Tenetehara estabelecem com os brancos relações de troca, mantendo-se livres mas considerados por estes como socialmente inferiores. Tal como estava acontecendo nas diferentes províncias no reinado de Pedro II, que então se iniciava, as aldeias tenetehara foram postas aos cuidados de diretorias parciais subordinadas à diretoria geral de índios do Maranhão, que também recebeu missionários capuchinhos, uma outra medida geral do Império. Em sistema paralelo ao das diretorias, algumas aldeias foram agrupadas em colônias indígenas ou se viram incluídas em sua órbita de influência. A responsabilidade por essas diretorias e colônias coube não raro a missionários capuchinhos ou membros da elite local. Tanto nas colônias como nas aldeias delas distantes os Tenetehara estavam contato com comerciantes, fazendeiros, sertanejos pobres e sujeitos a um intenso processo de assimilação. Sua população em geral, e especialmente em algumas regiões, decresce.
As relações dos Tenetehara com o brancos tomam uma nova direção a partir do levante de uma parte deles contra a missão capuchinha de Alto Alegre, no alto Mearim, em 1901. Instalada no último decênio do século XIX, essa missão mantinha uma orientação obsoleta, mesmo para sua época, apesar de sua contribuição na instrução escolar e nas artes e ofícios. Mortes de crianças internas por doenças não debeladas com presteza e a punição de um índio com cárcere privado, atado por quatro semanas de modo humilhante e penoso, em razão de ter abandonado por outra a esposa considerada legítima constituíram o estopim para a rebelião, para a qual pode ter contribuído também a hostilidade velada de certos comerciantes e fazendeiros pela competição que a missão lhes fazia. A morte dos padres e freiras, de crianças e jovens internados não indígenas, de brancos das vizinhanças, desencadearam a ação das milícias repressoras, que contaram com a colaboração dos índios Canelas (Ramkokamekrá). Por cerca de vinte anos atitudes de desconfiança e desconforto reinaram entre brancos e Tenetehara, sobretudo os da área em que tinha ocorrido o confronto. Conforme aponta Mércio Gomes, esse distanciamento contribuiu para pôr um freio no processo de assimilação dos Tenetehara.
Segue-se a esses acontecimentos a instalação na região do Serviço de Proteção aos Índios, criado em 1910. As relações patrono-cliente prosseguem, mas, como mostra Mércio Gomes, os funcionários do órgão não se comportam exatamente como um patrão regional, dada a sua orientação ideológica favorável à promoção social dos índios e porque, servidores públicos que eram, não tomavam o descumprimento de algumas de suas ordens e exigências como uma ameaça a seus interesses pessoais. Gomes examina a criação e o funcionamento dos postos um a um, com uma riqueza de dados proporcional à disponibilidade dos documentos. Refere-se nominalmente a alguns funcionários, fossem inspetores, encarregados de postos, professores, enfermeiros, e comenta seu desempenho, perscruta seus interesses e relações, e avalia sua contribuição. Vale notar que, entre os funcionários recrutados na região de Barra do Corda, o SPI encontrou pessoas que trabalharam sinceramente a favor dos Tenetehara, mostrando que os sentimentos anti-indígenas não são unânimes mesmo nas áreas em que suas terras são altamente cobiçadas. Fazem-se os primeiros ensaios no sentido de identificar e delimitar as terras tenetehara, sem que se logre conduzir o processo até o final. A extração do óleo de copaíba no Gurupi decai, a população Tenetehara desse rio e dos que lhe ficam a oeste, no Pará, decresce, o mesmo acontecendo com a do baixo Pindaré, dando-se o contrário no alto Grajaú e Mearim.
É no período da Fundação Nacional do Índio, que sucede ao SPI em 1967, que essas terras serão demarcadas, homologadas e registradas. Funcionários um pouco mais preparados e sobretudo índios mais ciosos de seus direitos, apesar dos propósitos assimilacionistas do regime militar, logram garantir essas terras, malgrado algumas perdas irrecuperáveis devido à falta de visão e incúria de alguns agentes governamentais do passado. Os vínculos clientelísticos começam a ceder a novas formas de relacionamento com os brancos, mostrando-se os Tenetehara mais autônomos. Para isso contribuíram as novas possibilidades econômicas que se ofereceram aos Tenetehara, como a venda de artefatos à Artíndia, da FUNAI, ou diretamente à lojas comerciais e nas paradas rodoviárias; o fornecimento de maconha, tradicionalmente cultivada para uso próprio, aos consumidores forasteiros; o trabalho assalariado nos estabelecimentos de empresários agrícolas que vinham se estabelecer na região oriundos do sul do país; o plantio de arroz para venda; e o salário de professores bilíngües.
O livro processa e põe à disposição do leitor um enorme número de informações e indicações bibliográficas e documentais referentes à atuação político- administrativa daqueles que lidaram com os Tenetehara e índios vizinhos nos diferentes períodos e regiões, tornando-se uma excelente obra de consulta. Prevendo-se que os leitores, inclusive os próprios Tenetehara, sempre terão motivos para retornar ao livro, sente-se a falta de um índice remissivo, aliás providência rara nas edições brasileiras.
Obviamente, como qualquer obra, é fruto de uma escolha, o que implica em explorar certos aspectos em detrimento de outros. No caso das três unidades de produção — a família nuclear, a família extensa e a aldeia —, ainda que bem definidas na visão geral do sistema econômico dos Tenetehara (pp. 425-6), não se encontra nenhuma descrição viva e concreta de suas relações internas. Um ou outro exemplo de tensão entre as duas primeiras unidades aparecem aqui e ali, ficando a terceira como que na penumbra. Assim, Gomes admite que a distribuição de ferramentas de metal pelos jesuítas a indivíduos, como gratificação de serviços ou estímulo por seguirem o regulamento missionário teria sido uma das causas do surgimento da família nuclear como unidade de produção da economia interna (p. 439). Além de ser uma suposição de difícil constatação empírica, vale notar que, se a família nuclear ganhou alguma força nos aldeamentos missionários do baixo Pindaré, ela não teria se transmitido ao sistema familiar dos atuais Tenetehara, pois aqueles se transformaram em núcleos sertanejos após a expulsão dos jesuítas. Mais amparo etnográfico tem a constatação de que os ensaios de criação de gado na região Grajaú-Barra do Corda no terceiro quartel do século XX fizeram crescer a importância da família nuclear, por implicarem numa atividade que requer pouca mão-de-obra e que afasta os criadores daqueles que mantêm a agricultura (pp. 483-5). Por sua vez, a afirmação de que os monitores bilíngües da década de 1970 teriam se reforçado como chefes de famílias extensas devido a seu salário, passando daí a aspirar a cargos de direção nos postos indígenas (pp. 506-7) leva- nos a perguntar: se o monitor recebe salário por serviços que ele presta sem necessitar do apoio da família extensa, porque ele não redirecionaria seus rendimentos para a família nuclear? Ou terá ele que distribuí-lo pelos membros da família extensa para granjear apoio nas suas pretensões a cargo público? Mas nesse caso não terá de recrutar adesões numa unidade ainda maior, a aldeia? O exemplo mais rico em detalhes é o da breve trajetória de Virgolino como empresário dedicado à produção e venda de artefatos indígenas, que pôs sua família extensa, e ainda parentes próximos e distantes, para trabalhar para ele. Sem negociar com a Artíndia, que atuou entre os Tenetehara no período de 1972 a 1975, vendia diretamente a lojas e consumidores, mesmo de grandes centros distantes da região (pp. 488-494). Gomes o compara a Camiranga, um chefe de família extensa que se destacava, no tempo da pesquisa de Wagley e Galvão como produtor de óleo de copaíba. Mas vale notar que Camiranga, tal como Virgolino, estava envolvido com algo mais que a família extensa, pois, segundo esses pesquisadores, ele era também o chefe da aldeia, que incluía mais três famílias extensas além da sua (pp. 34-5 e 40-1 do referido livro desses autores).
Na terminologia de parentesco Gomes também vê modificações que atribui a mudanças de caráter demográfico decorrentes de transformações socioeconômicas. Ele considera a terminologia atual atípica e incongruente porque, apesar de igualar todos os primos a irmãos e irmãs, independentemente de serem paralelos ou cruzados, distingue, na primeira geração ascendente o pai e o irmão do pai, chamados por um mesmo termo, do tio materno; e a mãe e a irmã da mãe, também rotuladas por um mesmo termo, da irmã do pai. Baseado nas informações de um naturalista que passou pelos Tenetehara em 1856, na memória dos velhos de hoje e na existência de termos descritivos para primos cruzados, Gomes admite que há uns 150 anos atrás o casamento entre primos cruzados era comum, e a terminologia de parentesco mais coerente. O quase total abandono do casamento de primos cruzados, aventa ele, teria sido uma estratégia dos Tenetehara para forçarem a uniões matrimoniais entre moradores de aldeias distintas, evitando que se atomizassem como núcleos sem laços entre si num período em que se expandiam geograficamente (pp. 65-68). Aqui vale o reparo de que a terminologia tenetehara não é tão atípica quanto parece, pois está presente em outros lugares; o próprio Eduardo Galvão viu o mesmo descompasso terminológico das duas gerações contíguas entre os índios do alto Xingu, sendo o casamento entre primos cruzados a minoria dos casos observados, mas por outro lado considerado como a união ideal, havendo recursos terminológicos para especialmente designá-los e relações jocosas e evitativas para distingui-los (pp. 101-2 de Encontro de Sociedades, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, volume que republica artigos desse autor, inclusive "Cultura e sistema de parentesco das tribos do alto rio Xingu"). Se na vida social a cada situação não se abrissem inúmeras alternativas, e se houvessem dados disponíveis para cada período e região em que vivem ou viveram os Tenetehara, haveria a possibilidade de testar a hipótese de Gomes, usando o seu rico levantamento demográfico: a cada retração areal ou populacional deveria ocorrer um aumento dos casamentos de primos cruzados. Mas vale lembrar que numa situação de retração há pelo menos duas alternativas, a segunda das quais muitas vezes escolhida nas épocas difíceis do passado: ou voltar a casar com primos cruzados ou casar com os brancos.

Julio Cezar Melatti

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