quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Mato Grosso do Sul ganha tempo no Ministério da Justiça

A reunião entre o ministro da Justiça, Tarso Genro, e o governador de Mato Grosso do Sul, André Pulcinelli, que ocorreu ontem à tarde, resultou em conversa fiada e delongas sobre as grandes questões que a motivaram.

Segundo os deputados presentes, o ministro Genro liberou a bancada do Mato Grosso do Sul para trabalhar, em nome do governo, pela aprovação de uma PEC (Projeto de Emenda Constitucional) que muda a Constituição para incluir, no artigo 231, o pagamento do valor da terra que seja declarada indígena. Desse modo, disseram os deputados ao ministro, os fazendeiros vão aceitar as suas saídas.

Ora, se pensarmos no valor da terra atual, o governo teria que desembolsar, para demarcar cerca de 500.000 hectares, que é o mínimo que os índios estão esperando no Mato Grosso do Sul, cerca de R$ 2,5 bilhões a R$ 5 bilhões.

Não é só por isso que ocorre no Mato Grosso do Sul que a idéia de mudar a Constituição é um despropósito e uma armadilha perigosa para a questão indígena brasileira. Se tal acontecer, todas as pessoas que foram retiradas de suas antigas fazendas e receberam os valores tão-somente pelas benfeitorias implantadas, irão daí por diante reclamar direitos sobre a terra nua. O caos da questão fundiária indígena vai se instalar e o STF será chamado para interferir.

Os deputados e advogados sabem disso. Mas estão contando com a ingenuidade ou pouco-caso do ministro Genro para ganhar tempo e criar reboliço anti-indígena no Congresso.

Por fim, foi prometido ao governador uma audiência com o presidente Lula para tratar da questão fundiária indígena no Mato Grosso do Sul. Um ministro que leva ao seu superior, o presidente, uma questão que ele mesmo provocou, é um perigo para o estado brasileiro.

Índios norte-americanos doam 1 milhão de dólares a Obama

Os índios norte-americanos, chamados de Native Americans, como os afro-descendentes, têm sido tradicionais aliados do Partido Democrata, nos Estados Unidos. E, como todo aliado, na hora das eleições suas organizações se empenham. Inclusive doando dinheiro.

O que esperam os índios de Obama? Ainda não li nada sobre isso nas declarações ou programa de Obama. Certamente esperam uma atitude mais liberal, mais recursos ao Bureau of Indian Affairs (BIA), a FUNAI de lá, que é dirigida por um índio Cherokee que foi soldado na primeira guerra do Iraque.

A matéria abaixo diz também que, por ser do estado do Arizona, que tem uma porcentagem bastante razoável de índios, e onde está a maior e mais importante reserva indígena, dos índios Navajo, o senador e candidato do Partido Republicano, John McCain de vez em quando defende interesses indígenas no Congresso Nacional.

Há que se saber que a questão indígena nos Estados Unidos é regida duplamente pelo Congresso Nacional, que faz a legislação, as audiências e as resoluções sobre problemas federais, e o próprio BIA, que pertence ao Ministério do Interior, do poder Executivo, que financia programas de assistência, de desenvolvimento econômico e de educação.

Notem que, apesar do liberalismo e do municipalismo que caracterizam os Estados Unidos, a educação indígena é matéria federal, não municipal ou estadual. Há uma instituição ligada diretamente ao BIA que cuida da educação indígena. Já a saúde também é federal, assistida pelo ministério da Saúde de lá.

Os povos indígenas nos Estados Unidos são reconhecidos como "tribos" e se dividem de acordo com as terras que possuem. As tribos são subdivisões das etnias e povos, e cada um se identifica pelo local e pela terra que possui. Assim, temos diversas tribos Dakota, quando, na verdade, são um povo só.

No total são 575 tribos reconhecidas pelo governo federal e somam cerca de 2 milhões de pessoas. A maioria dos indivíduos indígenas vivem nas cidades, em muitos casos em situações de pobreza. Porém, no total as tribos detêm cerca de 2,5% do território americano, aproximadamente um quinto do que detêm os povos indígenas brasileiros. No final do século XIX, os índios detinham três vezes mais terras, as quais foram perdidas em função de uma política liberal que individualizou as terras e permitiu que os índios as vendessem.

É bom que o movimento indígena brasileiro se mire na história dos índios americanos para saber AQUILO QUE NÃO DEVEM FAZER para não sofrer as mesmas conseqüências.

De todo modo, melhor escolher Obama que McCain.

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ÍNDIOS NORTE-AMERICANOS APÓIAM OBAMA

ANSA - Agência de Notícias

As tribos indígenas dos Estados Unidos demonstraram preferir o democrata Barack Obama para ocupar a presidência do país, ao invés do republicano John McCain, um defensor histórico desse grupo minoritário.

Segundo o Wall Street Journal, os nativos norte-americanos contribuíram com US$ 1 milhão para a campanha de Obama. A publicação também recordou que McCain negou receber qualquer contribuição dos índios desde 2006, quando se tornou o presidente da comissão para os Assuntos Indígenas no Senado.

O senador do Arizona sempre aconselhou os índios a gastar os seus fundos para melhorar as precárias condições de vida de algumas reservas indígenas, em vez de financiar políticos.

Tradicionalmente, as tribos indígenas são mais próximas dos democratas, mas McCain chegou a defender causas desse grupo no Congresso contra lobistas de Washington.

O voto dos índios pode ser importante para os resultados em alguns estados como Novo México, além de ajudar Obama em estados republicanos como o Montana. Os índios norte-americanos também são numerosos no Minnesota, na Carolina do Norte e no Colorado.

Morre Sílvio Coelho dos Santos

Morreu nesse domingo o antropólogo catarinense Sílvio Coelho dos Santos, aos 70 anos,

Sílvio teve formação em história antes de fazer um mestrado e doutorado em Antropologia. Foi aluno de Roberto Cardoso de Oliveira, no Museu Nacional, onde fez seu mestrado, e de Egon Schaden, na Universidade de São Paulo, onde fez seu doutorado.

Suas teses tratam dos elementos e das circunstâncias que envolvem a integração dos índios na sociedade nacional. Dedicou-se em especial aos índios Xokleng da região do rio Itajaí.

Como professor da Universidade Federal de Santa Catarina, Sílvio foi de fundamental importância na constituição do Departamento de Antropologia, na criação do Museu de Antropologia e na abertura do mestrado e do doutorado em Antropologia naquela instituição.

Sílvio também se preocupou em especial com os impactos sobre terras indígenas pela construção de hidrelétricas. Teve um papel importante na Associação Brasileira de Antropologia em estabelecer uma ética de trabalho de campo e de retorno do trabalho antropológico para os povos indígenas. Foi presidente da ABA na década de 1980

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Índios Guarani obtêm grande vitória no Paraná

Em meio às pressões do governador e da bancada do Mato Grosso do Sul contra a FUNAI e o processo de reconhecimento de novas terras indígenas naquele estado, inclusive com reunião marcada para hoje com o ministro Tarso Genro, os índios Guarani-Ñandeva vêm de obter uma grande vitória no estado do Paraná.

A 4ª Turma do TRF, em Porto Alegre, negou provimento, por unanimidade, à Apelação Cívil nº 2005.70.04.001764-3/PR impetrada pela empresa Itaipu Binacional contra os Guarani que vivem nas aldeias Tekoha Marangatu, Tekoha Porá e Tekoha Karambey, no município de Guaíra, no oeste paranaense.

Nas palavras do jornal eletrônico Umuarama Notícias, do Paranã;

"Com isso, o Tribunal confirmou a sentença proferida na primeira instância da Justiça Federal de Umuarama, PR, em dezembro de 2007, no âmbito da Ação Judicial nº 2005.70.04.001764-3/PR em que a Itaipu Binacional pedia a reintegração de posse das áreas de terra onde estão localizadas as aldeias em questão. Na referida sentença, o Juiz Federal foi enfático na defesa do direito dos Guarani sobre suas terras tradicionais, assim se pronunciando;

“Ante o exposto, julgo improcedente o pedido possessório formulado pela ITAIPU BINACIONAL e declaro que as terras ocupadas pelos índios Avá-Guarani nos lotes abordados (Tekoha Porá; Karumbey e Tekoha Marangatu) constituem terras indígenas tradicionalmente ocupadas, não podendo ser objeto de domínio ou posse, senão pelos próprios índios, conforme disposição constitucional, independente de prévia demarcação”.

"Em sua decisão, proferida no último dia 15 de outubro e publicada neste dia 27, os desembargadores do Tribunal Regional citam parte da sentença da primeira instância em que se lê:

“Atualmente as ocupações indígenas em Guaíra concentram-se em três lotes: 1) Tekoha Porá (sul); 2) Karumbey (norte), e 3) Tekoha Marangatu, na Faixa de Proteção. É sobre a área desses três lotes que a requerente postula a proteção possessória. Todavia, segundo o estudo antropológico em questão, os dois primeiros lotes são provenientes de uma mesma antiga aldeia indígena, invadida pelo crescimento da cidade, que restringiu a extensão do território anteriormente ocupado pelos índios, envolvendo-o na zona urbana. Portanto, a área em questão representa terra tradicionalmente ocupada pelos índios, já que originária de uma só terra indígena, atualmente transformada em dois lotes de cerca de 2 has., mas que certamente alcançava uma dimensão muito maior, e que acabou sendo restrita ante o crescimento da área urbana de Guaíra”.

"Citam ainda parte do parecer do representante do MPF Regional segundo o qual “o argumento de que o alcance da norma inscrita no art. 231 da CF deve restringir-se às terras atualmente ocupadas por silvícolas não prospera. O art. 231 da Constituição deve ser interpretado segundo a lição de José Afonso da Silva: 'o tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam, etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições' [SILVA, José Afonso da, Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, in Santilli, Juliana (coord.), Os Direitos Indígenas e a Constituição, Porto Alegre: NDI e Fabris Editor, 1993, p. 47].'

"Assim, o conceito de posse indígena remete à ocupação de forma tradicional. Se os índios foram expulsos ou afastados da área no passado, isso não pode ser obstáculo ao reconhecimento do direito que possuem. Assim, é suficiente a existência de um liame entre os atuais integrantes da comunidade e a área disputada, de forma que o território esteja vivo na lembrança do povo”.

O importante a verificar nessa sentença é o reconhecimento sobre o que se entende por "tradicionalidade", onde foi aceita o entendimento do jurista José Afonso Silva, que interpreta não como uma questão de temporalidade, mas de "modo de praticar seus usos e costumes". Embora essa interpretação necessite de maiores explicações, o TRF-4 acatou-a por unanimidade. Se esse reconhecimento for aceito pelo STF em futuras decisões, inclusive as da Raposa Serra do Sol e Caramuru-Paragauçu, as demarcações de diversas terras indígenas no Mato Grosso do Sul serão possíveis de serem realizadas.

Boa notícia para os índios Guarani. Enfim, outra notícia a ser comentada é que os Guarani-Kaiowá do sul do Mato Grosso do Sul estarão reunidos num Aty Guaçu (grande assembléia) na Aldeia Campestre, município de Antônio João, onde foi assassinado o líder Guarani Marçal Tupã-y, há 25 anos.

Marçal foi o grande líder Guarani que defendeu seu povo contra o preconceito e suas necessidades para obter terras. Ele era amigo e correspondente de Darcy Ribeiro e saudou o Papa João Paulo II em sua vinda a Manaus. A Terra Indígena Ñanderu Marangatu, demarcada e homologada quando eu era presidente da FUNAI, e pendurada em juízo no STF desde agosto de 2005, é resultado do trabalho e da determinação de Marçal.

Espero que esse Aty Guaçu tenha sucesso!

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Mato Grosso do Sul desce no Ministério da Justiça

O governador de Mato Grosso do Sul, diversos deputados federais e representantes dos fazendeiros vão estar com o ministro Tarso Genro amanhã, quarta-feira.

Querem ouvir do ministro o que a FUNAI e o MJ estão pensando sobre as demarcações de novas terras naquele estado. Vão cobrar duramente do presidente da FUNAI a tal das instruções normativas que deveriam nortear as ações de reconhecimento das novas terras indígenas dos Guarani.

Vão cobrar também a ampliação da Terra Indígena Cachoerinha, que passou de 2.670 hectares para 36.700. De fato, esse intempestivo calcanhar de aquiles o ministro Tarso vai ter que resolver porque foi ele mesmo quem o fez.

Um deputado, do alto de sua soberba insensata e insciente, diz que vai cobrar a extinção da FUNAI, supostamente por ela não servir para nada e não ter resolvido o problema dos índios. É de matar. O governador vai estar mal servido acompanhado desse dito cujo.

Tudo isso já é a cobrança do PMDB sobre o governo. Ganharam as eleições, vêm cheios de panca. Querem comandar.

Por outro lado, longe, na Colômbia, o presidente Uribe ficou de conversar com uma multidão de indígenas que fizeram uma grande marcha no departamento do Vale del Cauca e foram parar na capital, Cali. Ficaram horas esperando a vinda de Uribe, domingo passado, e nada do presidente aparecer. Quando ele chegou já era tarde, os índios se aborreceram e o xingaram de todo jeito, de "cabrón" a "asesino".

Nova reunião será marcada, mas a coisa já azedou. Os índios da Colômbia cobram o mínimo: que não os matem os para-militares, que lhes garantam o mínimo de terras para sobreviver, sem vendê-las ao capital internacional, e alguma ajuda do governo. Acontece que as FARC, em declínio, aproveitaram essa marcha para se posicionar no meio e abrir novos flancos de apoio.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Pós-eleições: O que virá agora?

O resultado das eleições para prefeitos das 5.570 cidades brasileiras demonstra que o PMDB teve um fortalecimento acima do esperado.

Tanto porque ganhou em 1.207 cidades, segundo alguns jornais, quanto porque ganhou em cidades em que o PT esperava ganhar e era importante ganhar. Por exemplo, em São Paulo, onde Gilberto Kassab ganhou de Marta Suplicy, tendo como vice-prefeito a peemedebista Alda Marcoantonio, ligada pessoalmente a Orestes Quércia, que continua cacique do PMDB em São Paulo.

No Rio de Janeiro, a eleição foi disputadíssima, mas teve uma altíssimo nível de abstenção de votos. Cerca de 927.000 eleitores deixaram de votar, a maioria da Zona Sul e da Zona Norte, onde o candidato do PV-PSDB-PPS tivera a maioria dos votos. Assim, Gabeira foi derrotado por apenas 55.000 votos, menos de 10% dos votos de abstenção. O PMDB foi vitorioso.

Foi vitorioso também em Salvador, Porto Alegre, Florianópolis e outras cidades mais pelo interior.

Eis que agora, segundo um colunista de São Paulo, os caciques do PMDB, José Sarney e Rennan Calheiros, estão tramando a saída de Tarso Genro, do Ministério da Justiça, para substitui-lo por Nelson Jobim, que hoje está no Ministério da Defesa. Para esse último ministério iria então Aldo Rabelo, do PCdoB de São Paulo.

Por que? Parece que é porque Sarney e Rennan estão chateados com um suposto uso da Política Federal por parte de Tarso Genro contra Sarney, especialmente contra seu filho Fernando Sarney, acusado em inquérito da PF de mal uso de verbas públicas nos diversos ministérios e autarquias controladas pelo PMDB de Sarney.

Dizem que o presidente Lula já teria concordado com essa mudança. Já no Palácio do Planalto, desmentem isso veementemente alegando que Lula não age por pressão.

Bem, a chapa está quente mesmo. Porém ponho em dúvida esse tipo de troca. Não acho que Jobim volta para o MJ. Seria dèja-vu demais!

De qualquer modo, mudanças serão feitas em breve no governo. Lula precisa azeitar sua máquina, que não demonstrou ser tão funcional quanto parecia à primeira vista. Precisa acomodar a gulodice do PMDB para sonhar com uma chapa PT-PMDB em 2010.

Por sua vez, a FUNAI está na mira do PMDB, especialmente dos governadores de Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, sem falar nos estados que estão se movimentando para fazer suas próprias políticas indigenistas. É o resultado insidioso da gestão atual da FUNAI, que criou ilusões entre os índios e acirrou o antiindigenismo brasileiro.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Índios Tupinambá de Olivença são perseguidos pela Polícia Federal

Ante a demora para resolver a questão da demarcação da terra Tupinambá de Olivença - a antropóloga indicada por Eduardo Almeida, ex-presidente da Funai, é portuguesa e, estando em Lisboa, não encontrou documentação relativa ao século XIX e desconhecia como enquadrar o laudo nos novos padrões exigidos - os índios fizeram algumas retomadas. Algumas dessas foram realizadas há mais de 3 anos, sendo a mais consolidada a da Serra do Padeiro do Cacique Babau que tem ali constituída uma aldeia com escola, posto de saúde e inúmeras casas.

A antropóloga está em campo neste momento tentando ajustar o laudo e vivendo o conflito.

Há mais de um ano que se estabeleceu um conflito entre índios e Funai contra fazendeiros, juiz e prefeitos da região. Todas as ações de reintegração de posse foram derrubadas pela Funai em sucessivas ações, sendo que a última foi caçada ontem e TFR garantiu a permanência dos índios por mais 180 dias.

A PF chegou á área com mais de 130 homens para cumprir as ações de reintegração. Foram recebidos com flechas, 4 agentes teriam sido machucados e um carro da PF danificado. A PF respondeu com tiros de bala de borracha, tendo machucado alguns índios, inclusive um senhor de 85 anos que foi atingido no peito se encontra internado até o momento em hospital regional.

Incomodados com a reação dos índios e havendo uma velhíssima ordem de prisão contra Babau por invasão da sede da Prefeitura de Buerarema, resolveram hoje cumprir esse mandato, agravando o estado de tensão.

Para pressionar Babau, a PF prendeu o irmão que estava portando uma arma, apreendeu o ônibus escolar com crianças e mães, que depois os liberou e se satisfez com a prisão do motorista, ampliou seu efetivo e iniciou a caçada ao cacique por terra e ar com helicópteros. O efetivo era de 30 carros e, segundo se diz, mais de 180 homens atuaram na operação.

O último telefonema recebido pela manhã pela antropóloga da Funai - Leila Burguer - foi da mãe de Babau que, naquele momento, estava tendo sua casa bombardeada com bombas de gás e passando mal.

Todas as instâncias estaduais e federais foram notificadas em busca de auxílio, mas a receptividade, inclusive ao Ministro da Justiça, pela PF tem sido de absoluta indiferença.

Agora á tarde a tropa está se retirando do local, após apreender espetos, facas, facões, espingardas de caça e 1 ou 2 revólveres. Há agentes feridos, muitos índios machucados, uma comunidade totalmente apavorada. Um agente da PF, antes de se retirar, deixou o seguinte recado para Babau: que tivera muito prazer em atirar nele na 2ª feira, que a vingança não tardaria e deixou nome e número de telefone para, caso Babau quisesse resolver o problema entre eles, que ligasse e marcariam encontro.

A grande pergunta é: voltamos aos tempos da ditadura ou Olivença e a Serra do Padeiro foi transferida para a Cisjordânia e ninguém nos avisou?

Texto escrito pela antropóloga Maria Hilda Paraíso, da Universidade Federal da Bahia, 23/10/2008

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Índios Gaviões-Pykobye mantêm reféns em sua aldeia

Há cinco dias os índios Gaviões-Pykobye, da aldeia Riachinho, Terra Indígena Gavião, no centro-oeste maranhense, estão retendo pessoas da Secretaria de Educação do estado.

Dizem que não as deixarão sair até que se inicie alguma ação de construção de uma escola na aldeia. Ontem trocaram duas das quatro reféns por uma que viera fazer as pazes e negociar a liberação de todos. Deu azar.

Os índios Gaviões do Maranhão não são do tipo de fazer reféns. O fato é que perderam a paciência com a Secretaria de Educação do Maranhão e partiram para um gesto inusitado e agressivo. Agora a liberação vai dar trabalho.

Na Semana do Índio deste ano estive em São Luís e dei uma palestra à qual compareceram o governador do Estado, Jackson Lago, e o secretário de Educação, Luís Vieira. Conheço o governador há muitos anos e sei do quanto ele está aberto aos povos indígenas. Mostrei ao governador o quanto a questão de educação é sensível aos povos indígenas do Maranhão, já que muitos querem concluir o curso médio e seguir para a universidade. Há pelos menos oito índios Guajajara que já têm diploma universitário, obtidos a muito custo, e graças ao programa de educação bilingue instalado na década de 1970.

O governador e seu secretário de Educação ficaram de olhar a educação indígena com atenção, mas alguma coisa ficou descuidada. Esta de prometer uma escola indígena e não construi-la só pode dar em encrenca. Parece, segundo os jornais maranhenses, que alguém dessa secretaria tinha feito um relatório dizendo que as obras tinham começado.

Os índios sabem melhor e infelizmente perderam a paciência e partiram para uma atitude agressiva.

Índio Colombianos fogem das FARC e são barrados pelo governo federal


Há vários dias temos notícias de índios em Colômbia. Uma marcha com mais de 10.000 índios do noroeste daquele país saiu do departamento de Cauca e está a caminho da cidade de Cali, onde querem fazer um grande protesto contra a política indígena de Álvaro Uribe. Notem que a marcha não ousa vir a Bogotá, por receio de repressão. Cali já é o máximo para eles.

Parece que, no meio de caminho, houve um confronto com a polícia militar ou rodoviária, e um índio quedou morto, vítima de uma projétil que o próprio presidente Uribe disse que não saiu dos rifles dos seus militares. Saiu de estilhaços de uma bomba que teria sido estourada por guerrilheiros infiltrado entre eles, pois estão sendo massa de manobra das FARC, diz o presidente. A notícia deu manchetes em jornais internacionais.

Os índios protestam porque vêm sofrendo de violências por parte de para-militares e das FARC. Violência quer dizer mortes. Protestam porque não têm terras garantidas. É interessante notar que a Constituição da Colômbia, de 1993, declara como terras indígenas quase 20% do território colombiano. E que elas teriam uma legislação específica, como se fossem municípios autônomos. Algo que, parece, a Bolívia pretende imitar. Só que, ao contrário do Brasil, nenhuma dessas terras está demarcada e garantida com exclusividade. A Colômbia diz que as terras são indígenas, mas qualquer um pode assentar-se por lá e viver sem o sentimento de intrusão. Curioso também é que a Colômbia foi o único país da América do Sul que se absteve de votar pela Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, na ONU, em setembro de 2007.

A notícia abaixo trata do fenômeno de famílias e até de grupos indígenas que são forçados a se retirarem de suas terras pelas milícias guerrilheiras. Um grupo de Bora, um povo indígena do leste colombiano, viajou por 16 dias pela floresta até chegar na cidade de Letícia, que faz fronteira com a cidade brasileira de Tabatinga.

Muitos índios daquela região estão se refugiando no Brasil. Passam para o território brasileiro onde há parentes da mesma etnia ou do mesmo grupo linguístico. Especialmente na região do rio Negro, onde está a Terra indígena Alto rio Negro e o município de São Gabriel da Cachoeira. Encontram um refúgio, mesmo que precário, entre seus parentes. Outros preferem se refugiar nas cidades. Há muitos deles em Tabatinga, em Manaus e na própria cidade de São Gabriel da Cachoeira.

O Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) procura encontrar meios para abrigar esses indígenas e dar-lhes algum sustento temporário. Muitos decidem viver no Brasil, sem perspectivas de retorno.

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Passando pelo Brasil, índios colombianos fogem de conflito armado, informa Acnur
Seis pessoas viajaram 16 dias na Amazônia para se refugiar.
Mais de 20 grupos indígenas da Colômbia correm risco de desaparecer.



Índios fugiram para a cidade de Letícia, na fronteira da Colômbia com o Brasil.

Indígenas colombianos da tribo Baro viajaram 16 dias por três rios amazônicos, passando inclusive por território brasileiro, para se refugiarem na cidade de Letícia, que fica próxima à fronteira da Colômbia com o estado do Amazonas. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), os seis índios fugiram de sua terra porque ela foi invadida por um grupo armado.

Eles foram recebidos pelo padre da cidade, onde chegaram no começo de outubro. Segundo o órgão da ONU, apesar de as leis colombianas garantirem ajuda a vítimas de deslocamento forçado, as autoridades locais inicialmente se recusaram a receber o grupo, pois não possuíam documentos de identificação.

Com menos de 700 membros, os Baro são um dos menores grupos indígenas dos 80 existentes na Colômbia, dos quais 27 estão em perigo de extinção (um grupo é considerado em risco quando sua população possui menos de 500 membros), informa o Acnur. Outros grupos indígenas que foram deslocados para Letícia incluem os povos Huitoto, Kofan e Inga.

De acordo com o Acnur, a Amazônia colombiana, que abrange uma área de cerca de 100 mil quilômetros quadrados, é esparsamente povoada e possui somente 75 mil habitantes, sendo mais de um quarto deles indígenas. Letícia conta atualmente com cerca de 25 mil habitantes, é cercada por selva e não tem acesso por estrada. O isolamento, informa a Acnur, faz com que a cidade não sofra com o conflito armado como outras regiões do país.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Saúde indígena em pandarecos

Há dois meses os ministérios da Saúde e do Planejamento enviaram uma mensagem ao Congresso Nacional contendo um projeto de lei em que constava a criação e remanejamento de alguns cargos de assessoramento e uma nova Secretaria, dentro do MS, a qual teria por obrigação cuidar da saúde indígena. Para todos os efeitos, retirava-se da Funasa o atendimento das populações indígenas, ficando apenas com as tarefas de saneamento.

De lá para cá, o ministério da Saúde vem sofrendo a crítica mais contundente da própria Funasa, cujos dirigentes são membros do PMDB e querem tão-somente favorecer os interesses escusos de seus patrões. Esses dirigentes estão arregimentando diversas organizações indígenas para defender o status quo ante, isto é, a continuidade da Funasa na saúde indígena.

Note-se que o orçamento da Funasa para a questão indígena passa dos R$ 350 milhões, uma bagatela invejável para o pouco cuidado que se toma nos meandros azeitados dessa máquina.

Isto é mais que o dobro do orçamento atual da FUNAI. Em priscas eras, a FUNAI cuidava da saúde indígena com o equivalente a míseros R$ 25 milhões, isto é, menos de 10'% do orçamento da Funasa. Não fazia o suficiente, deixava a desejar, sem dúvida, mas tinha o respeito dos índios e um diálogo permanente que favorecia o conhecimento da saúde individual dos índios. Faltava-lhe recursos e pessoal. Imagine se pudesse ter metade do orçamento da Funasa! Era o que eu propunha ao governo quando era presidente da FUNAI: passar a saúde para a FUNAI e alavancar seu orçamento ao menos para a metade dos recursos da Funasa.

Em portaria expedida recentemente, o MS criou um Grupo de Trabalho para estudar e propor a existência dessa Secretaria. Nesse GT não se prevê nem a presença da FUNAI nem de índio!

Nessa altura da relacionamento interétnico e da autoconsciência indígena isto consiste num despautério sem limites!

Porém, enquanto esse GT não se reúne, não apresenta propostas sobre como deve funcionar a nova Secretaria, a Funasa continua atuando nos moldes de sempre. E as reclamações continuam pelo Brasil afora.

Recentemente, após longas negociações com o Instituto de Desenvolvimento e Tradições Indígenas (IDETI), uma instituição criada e comandada pelo Xavante Jurandir Siridiwê (o mesmo que inspirou o filme Estratégia Xavante), a Funasa tinha acordado que o IDETI iria cuidar da saúde indígena dos índios Xavante.

Lembrem-se que os Xavante somam cerca de 12.000 indivíduos divididos em 170 aldeias na região leste do estado do Mato Grosso, e que foram vítimas recentemente do escândalo do desvio de recursos da Funasa pela Universidade de Brasília, cuja fundação tinha um convênio com a Funasa. Essa fundação surrupiou nada menos de R$ 8 milhões no breve período de 2 anos de existência do convênio.

Pois bem, o IDETI trabalhou durante meses na elaboração de um programa de saúde, foi apresentá-lo em inúmeras aldeias, ganhou o apoio do Conselho Indígena de Saúde, assinou o convênio com a Funasa, e, quando tudo parecia certo, o convênio foi extraviado ao ser enviado para Cuiabá e aí o diretor de saúde Wanderley Guenka o deu por perdido e cancelado.

É certo que há interesses por trás disso, não para ajudar os Xavante em sua saúde, mas para encontrar meio de obter verbas manipuláveis e cargos para assessores. O fato real é que os Xavante sofrem das piores condições de saúde entre os índios brasileiros. Ultrapassam de longe os Guarani. Seus índices de mortalidade infantil, em média, chegam a 140 por mil. Só na aldeia Maraiwatsede, talvez a maior delas na atualidade, com mais de 650 pessoas, esse índice atingiu esse ano a casa dos 200 por mil.

Por sua vez, não são só os Xavante que sofrem com a questão da saúde. Os Yanomami já declararam guerra à Funasa e a diversas Ongs que vieram trabalhar com eles. Inclusive a UnB.

De fato, todos os índios estão preocupadíssimos com a possibilidade desse projeto de lei colocar a saúde indígena sob a responsabilidade dos municípios. Isto é, municipalizar a saúde indígena. Aí seria um deus nos acuda.

Muitos índios já se encontram em Brasília para protestar contra esse despautério e essa falta de respeito. Os Xinguanos e os Kayapó estiveram lá há três semanas e mal conseguiram falar com o presidente da Funai, que não lhes deu nenhum apoio para falarem com o ministro da Saúde.

A coisa vai esquentar porque não poderá ficar pior. Vamos aguardar para as próximas semanas o desenrolar dessa questão gravíssima.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ministério da Justiça vacila em assinar portarias de demarcação

Amigos do Ministério da Justiça me mandaram a lista de terras indígenas que foram enviadas pela FUNAI e que estão para serem analisadas como possíveis terras a serem demarcadas. Os estudos foram realizados em anos diversos, sendo uma boa parte durante a minha gestão na FUNAI, tais como as terras indígenas da Bahia, do Ceará, do Amazonas, do Acre e algumas do Mato Grosso.

Os assessores do ministro Tarso Genro estão receosos de que grande parte dessas terras não tenha a devida argumentação de tradicionalidade e de posse permanente, e que, portanto, mais uma vez, seja resultado da precipitação sem estratégia da atual gestão da FUNAI.

Temem que o ministro possa se precipitar e assinar portarias de demarcação que intensifiquem o levante das bancadas dos respectivos estados e que, ao final, nem venham a ser demarcadas.

O ministro Genro anda escabriado com o fato de que nenhuma das portarias de demarcação que ele assinou no começo da nova gestão da FUNAI deu certo. Ao contrário, levantaram os colonos, fazendeiros e políticos de Santa Catarina, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul contra a política indigenista brasileira. Todas foram contestadas em juízo e estão paralisadas. Os índios aguardam com ansiedade a decisão de Suas Excelências.

Agora o ministro teme que os estados de Rondônia, Rio Grande do Sul, São Paulo, Ceará e Amazonas se juntem aos que já estão em pé de guerra: Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina. O envio dessas propostas o põe na berlinda.

Aliás, o estado do Mato Grosso está usando de uma tática muito esperta e diferente das atitudes do Mato Grosso do Sul. Além de insuflar os proprietários rurais e as populações locais contra os índios, está tentando cooptar lideranças indígenas para apoiar suas idéias e suas atitudes.

Nesse sentido, a Assembléia Legislativa do estado convocou uma grande reunião para o dia 22 de outubro em que foram convidados dezenas de lideranças indígenas para apoiar as reflexões que os deputados irão fazer sobre a política indigenista.

Cada índio vai receber R$ 500 e mais as despesas do hotel fazenda onde se dará a reunião. O triste é que alguns indigenistas foram contratados pelo governo do estado para ajudar na cooptação dos índios.

Eis as propostas de demarcação que a FUNAI enviou ao MJ à espera da decisão do ministro Tarso Genro.

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Terras Indígenas no Ministério da Justiça para receber portarias de demarcação: 24. Área Total: 869.982 ha

Terras indígenas por Estado, sendo 1 na Bahia, 1 no Acre, 3 no Amazonas, 7 no Mato Grosso, 4 no Mato Grosso do Sul, 2 no Ceará, 4 em Santa Catarina, 1 no Rio Grande do Sul e 1 em São Paulo.


BAHIA

TI Aldeia Velha -- Povo Indígena PATAXÓ -- Município: Porto Seguro -- Área: 2.001 hectares



ACRE

TI Arara do Rio Amonia -- Povo Indígena ARARA -- Município: Marechal Thaumaturgo -- Área: 20.764 hectares



AMAZONAS

TI Arary -- Povo Indígena MURA -- Municípios: Borba, Novo Aripuanã -- Área: 40.750 ha

TI Setemã -- Povo Indígena MURA -- Municípios: Borba, Novo Aripuanã -- Área: 49.430 ha

TI Sururuá -- Povo Indígena KOKAMA -- Municípios: Benjamin Constant, São Paulo de Olivença -- Área: 36.125 ha



MATO GROSSO

TI Baia do Guató -- Povo Indígena GUATÓ -- Município: Barão de Melgaço, Poconé -- Área: 19.164 ha

TI Batelão -- Povo Indígena KAYABI -- Município: Juara, Nova Canaã do Norte, Tabaporã -- Área: 117.050 ha

TI Kawahiva do Rio Pardo -- Povo Indígena KAWAHIBA (isolados) -- Município: Colniza -- Área 411.848 ha

TI Pequizal do Naruvôtu -- Povo Indígena KALAPALO (Naravute) -- Município: Canarana, Gaúcha do Norte -- Área: 27.980 ha

TI Ponte de Pedra -- Povo Indígena PARESI -- Municípios: Campo Novo do Parecis, Diamantino, Nova Maringá -- Área: 17.000 ha

TI Uirapuru -- Povo Indígena PARESI -- Municípios: Campos de Júlio, Nova Lacerda -- Área: 21.680 ha

TI Portal do Encantado -- Povo Indígena XIQUITANO -- Municípios: Pontes e Lacerda, Porto Esperidião, Vila Bela da Santíssima Trindade -- Área: 43.057 ha



MATO GROSSO DO SUL

TI Guyraroká -- Povo Indígena GUARANI KAIOWÁ -- Município: Caarapó -- Área: 11.440 ha

TI Jatayvari -- Povo Indígena GUARANI KAIOWÁ -- Município: Ponta Porã -- Área: 8.800 ha

TI Sombrerito -- Povo Indígena GUARANI NHANDEVA -- Município: Sete Quedas -- Área: 12.608 ha

TI Taquara -- Povo Indígena GUARANI KAIOWÁ -- Município: Juti -- Área: 9.700 ha



CEARÁ

TI Lagoa Encantada -- Povo Indígena: KANINDÉ-JENIPAPO -- Município: Aquiraz -- Área: 1.731 ha

TI Tapeba -- Povo Indígena TAPEBA -- Município: Caucaia -- Área: 4.767 ha



SANTA CATARINA

TI Morro Alto -- Povo Indígena: GUARANI MBYÁ -- Município: São Francisco do Sul -- Área: 893 ha

TI Pindoty -- Povo Indígena: GUARANI MBYÁ -- Município: Araquari, Balneário Barra do Sul -- Área: 3.294 ha

TI Pirai -- Povo Indígena GUARANI MBYÁ -- Município: Araquari -- Área: 3.017 ha
Guarani Mbyá

TI Tarumã -- Povo Indígena GUARANI MBYÁ -- Municípios: Araquari, Balneário Barra do Sul -- Área: 2.172 ha



RIO GRANDE DO SUL

TI Passo Grande do Rio Forquilha --Povo Indígena. KAINGANG -- Município: Cacique Doble, Sananduva -- Área: 1.916 ha



SÃO PAULO

TI Piaçaguera -- Povo Indígena: GUARANI NHANDEVA -- Município: Peruíbe -- Área: 2.795 ha

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Alcoolismo: um problema a encarar com novas idéias

Desde que abri esse Blog, há um ano e meio (março de 2007), tenho encarado algumas polêmicas muito incisivas no indigenismo brasileiro.

A mais forte tem sido minha resistência a achar correto ou normal ou educacional uma Ong religiosa, evangélica, a JOCUM, propagandear através de um filme, feito por um profissional americano, a prática de infanticídio entre os índios Zuruahá. Considerei e considero que a prática de infanticídio é, do ponto de vista antropológico, uma questão interna do povo indígena, e, do ponto de vista humanista, uma questão universal. Porém, para que haja alguma mudança essencial, só através do diálogo sério e respeitoso é que podemos -- nós não indígenas concernentes -- buscar interferir. Nunca pela propaganda religiosa explícita e desrespeitosa. Escrevi também que esse diálogo tem sido possível em vários momentos da vida de determinados povos indígenas e que, em muitos casos, essa prática social tem sido abandonado por força desse diálogo.

Isso me tem custado uma carga de críticas que beira a histeria. Basta ver os comentários que estão nesse Blog. Essa semana houve um congresso de Ongs evangélicas na cidade de Águas de São Pedro, interior de São Paulo, e eu fui atacado como uma espécie de besta-fera dos missionários evangélicos. Os missionários evangélicos constituem um grupo de pressão política muito forte e determinado. Têm subvenções oficiais e recursos em dólares vindos das igrejas americanas. Têm deputados em quase todos os partidos e eles se unem em torno das idéias religiosas sem nenhum senso crítico. Não aceito essa espécie de crítica, mas também não dá para dialogar com um grupo de pessoas influentes que se recusam a fazer uma auto-crítica sobre o que fizeram. Se o fizerem, retirar o filme da Internet, aí podemos abrir um diálogo.

Aliás, cadê o Ministério Público e a FUNAI nessa questão desse filme?

Hoje o assunto é alcoolismo entre os povos indígenas. O que me chamou atenção foi uma matéria em que o Ministério Público Federal, em Minas Gerais, cobra das autoridades (FUNAI, Funasa, polícia?) a fiscalização da proibição de venda de bebidas alcoólicas aos índios Maxakali, da região leste de Minas.

Os Maxakali têm de fato um histórico deprimente no uso do álcool. Pelo álcool é que ficam mais valentes e cometem assassinatos entre as facções que compõem sua sociedade. Entretanto, a proibição de comprar cachaça não tem resultado em abstinência. Ao contrário, o resultado é que os Maxakali terminam se valendo de pessoas que os exploram e vendem cachaça a preços absolutamente aviltantes. Aliás, isso acontece em todas as partes do Brasil. Se um litro de cachaça local custa numa venda ou num bar 4 ou 5 reais, os índios terminam comprando por 20 ou 30 reais.

Quando eu era presidente da FUNAI assinei um convênio com a Secretaria Nacional de Prevenção às Drogas para estudar seletivamente alguns casos de povos indígenas que abusam do álcool. A idéia era descobrir meios de diminuir o consumo do álcool entre os povos indígenas, não necessariamente de coibir. Isso é impossível e ilusório. Porém, os resultados daquela pesquisa não trouxeram grandes novidades de informação ou de sugestão, se não de mais controle de fiscalização.

Esse Blog se abre a esse debate. Não teme dizer que uma das alternativas seria a liberalização seletiva do consumo de álcool por parte de povos indígenas que já o fazem em grande quantidade. A proibição pura e simples não condiz mais com a realidade social dos povos indígenas e constitui um ato discriminatório sem sentido na atualidade indígena brasileira.


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MPF recomenda medidas contra a venda de bebidas alcóolica a índios

O Ministério Público Federal (MPF) expediu recomendação às polícias Militar e Federal para que aumentem a fiscalização e o número de efetivos, além de apurarem denúncias de venda de bebidas alcóolicas aos índios Maxakali, nos municípios de Santa Helena de Minas, Bertópolis e Ladainha, no Vale do Mucuri.

Segundo o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI/MG-ES), o consumo de álcool é a terceira causa de morte entre os integrantes da etnia Maxakali. A Polícia Federal e a Polícia Militar terão 20 dias para informar se acataram ou não a recomendação.

Crime

A venda de bebida alcoólica aos índios é crime previsto na Lei nº 6.001/73 (artigo 58, III), com pena que pode chegar a dois anos de detenção. Esse fato, no entanto, não tem impedido o aumento do comércio ilegal de álcool aos indígenas, prática que vem sendo apontada, inclusive, como a mais importante atividade econômica dos municípios localizados próximos às aldeias.

Açai é grande pedida!


Nada como uma caneca de açai de manhã na ressaca de uma péssima partida do Brasil, ontem no Maracanã. Fui ao jogo com meus filhos e fiquei decepcionado. Partida feia e sem graça. Entretanto, as vaias contra os jogadores foram dados por, como diz meu filho Chico, "torcedores amadores", que não sabem nem acompanham as angústias do futebol. De fato, as vaias começaram com menos de 20 minutos de jogo e certamente ajudaram a desconcentrar os jogadores brasileiros. Nem Kaká se saiu bem! Robinho teve o único mérito, após a partida, de reconhecer ter jogado muito mal.

Porém, o que interessa agora é o açai. Embora esse Blog não seja sobre alimentos, abro uma exceção para a matéria abaixo, que trata das qualidades dessa frutinha impressionante.

Trata-se de uma pesquisa feita nos Estados Unidos sobre o açai. A novidade é que sua propriedade de anti-oxidante foi demonstrada como perfeitamente absorvível pelo organismo humano. Quer dizer, não basta ser anti-oxidante, tem que mostrar que funciona. Outro dia li que o açai foi considerado um dos cinco alimentos mais importantes para o homem. Grande pedida. Acho que é por isso que os nossos índios envelhecem firmes e sem aparentar fisicamente um desgaste.

Por fim, chamo a atenção para as repercussões da invasão da Usina Hidrelétrica no rio Juruena feita pelos índios Enawenê-Nawê no sábado passado. Eles disseram à FUNAI que irão destruir as outras quatro que estão em andamento, caso não parem a construção. Por outro lado, o presidente da empresa estatal que trata da liberação de hidrelétricas, o engenheiro Maurício Tomasquin, acusou Ongs como sendo responsáveis pelo insuflamento dos índios. Um membro da OPAN, a principal Ong que se relaciona com os Enawenê-Nawê, tomou as dores da acusação e rebateu dizendo que os índios estão sabendo de tudo e querem a solução final, não por partes.

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Ponto para o açaí

Agência FAPESP

Um importante alimento dos habitantes na Amazônia, que também é consumido de Norte a Sul do Brasil, tem se tornado cada vez mais popular em outros países, como os Estados Unidos: o açaí. Por ser comercializado como uma “superfruta” em mercados norte-americanos, que destacam os potenciais efeitos benéficos para a saúde, um grupo de pesquisadores da Universidade Texas A&M tem estudado o açaí desde 2001.

O mais recente resultado da pesquisa traz nova boa notícia aos consumidores do fruto da palmeira Euterpe oleracea. Em artigo publicado no Journal of Agricultural and Food Chemistry, os cientistas descrevem que os antioxidantes contidos no açaí são absorvidos pelo organismo humano.

O estudo envolveu 12 voluntários, que consumiram açaí em polpa e na forma de suco, esta última contendo metade da concentração de antocianinas – pigmentos que dão cor às frutas – do que a versão em polpa. Os dois alimentos foram comparados com sucos sem propriedades antioxidantes, usados como controle.

Amostras do sangue e da urina dos participantes foram tomadas 12 e 24 horas após o consumo e analisadas. Segundo os pesquisadores, tanto a polpa como o suco apresentaram absorção significativa de antioxidantes no sangue após terem sido consumidos.

"O açaí tem baixo teor de açúcar e seu sabor é descrito como uma mistura de vinho tinto e chocolate. Ou seja, o que mais podemos querer de uma fruta?", disse Susanne Talcott, principal autora do estudo, do qual também participaram cientistas das universidades do Tennessee e da Flórida.

Segundo ela, trabalhos futuros poderão ajudar a determinar se o consumo do açaí pode resultar em benefícios para a saúde com relação à prevenção de doenças. O grupo do qual faz parte tem estudado a ação do açaí contra células cancerosas.

“Nossa preocupação é que o açaí tem sido vendido como um superalimento. E ele definitivamente tem atributos notáveis, mas não pode ser considerado uma solução para doenças. Há muitos outros bons alimentos e o açaí pode ser parte de uma dieta bem balanceada”, disse Susanne.

O artigo Pharmacokinetics of anthocyanins and antioxidant effects after the consumption of anthocyanin-rich açai juice and pulp (Euterpe oleracea Mart.) in human healthy volunteers, de Susanne Talcott e outros, pode ser lido por assinantes do Journal of Agricultural and Food Chemistry em http://pubs.acs.org/journals/jafcau.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Empresários se dispõem a ajudar a preservar a Amazônia

Ao lado da crise financeira mundial, os empresários no mundo todo estão preocupados com o aquecimento global. Muitas indústrias, especialmente as derivadas do petróleo (incluindo a automobilística), são as maiores causadoras da emissão de gases que provocam o efeito estufa na Terra.

Essa semana o empresário sueco-britânico Johann Eliasch, o mesmo sobre o qual o Fantástico fez uma matéria mostrando que ele tinha um grande pedaço de terra na Amazônia, vem de propor um plano para a salvação da Amazônia.

Seu plano consiste em pagar pela preservação da Amazônia e vem com um certo apoio do primeiro-ministro inglês Gordon Brown, que desesperadamente precisa de mídia para sair da situação de impopularidade em seu país.

O plano segue a linha de que os chamados "serviços florestais" devem compensar financeiramente a manutenção da floresta de pé. Modelos incluídos no estudo estimam que os custos gerados pela perda de florestas crescerão a passos largos até 2100, quando chegarão a US$ 1 trilhão por ano, se medidas não forem tomadas a tempo.

Como obter recursos para esse plano? O documento pede um acordo internacional que tenha como objetivo reduzir à metade as emissões causadas pela perda de matas tropicais até 2020, o que geraria ganhos de US$ 3,7 trilhões em longo prazo pelas estimativas citadas pelo estudo.

É mais um plano de um empresário que quer aparecer de qualquer jeito. É o que parece, pois as Ongs ambientalistas, tais como o Greenpeace e a WWF cairam de pau no plano. Dizem que vai provocar mais corrupção, má governança, e falta de fiscalização nos países onde há floresta amazônica.

Ademais, será que o Brasil está de braços abertos a esses planos?

Por outro lado, os empresários de São Paulo se uniram em torno de um plano para diminuir a demanda dos paulistanos por produtos amazônidas, tais como carne, soja e madeira. Se a demanda diminuir, calculam os empresários liderados por Oded Grajew, um ex-assessor do presidente Lula e empresário progressista, a destruição também diminuirá.

As Ongs estão unidas em torno dessas idéias. A questão é: parecem tão inviáveis como as dos empresários europeus.

Uma outra situação inusitada vinda da classe empresarial foi a notícia de que Eike Batista, o dono da empresa EBX, que agrega diversas outras empresas metalúrgicas, minerais e que tais, fez uma doação de R$ 11,4 milhões ao Ministério do Meio Ambiente para cobrir as despesas de três parques nacionais: o de Fernando de Noronha, o dos Lençóis Maranhenses e o Pantanal. O plano foi aprovado pelo Ministério do Meio Ambiente, isto é, pelo ministro Minc, mas não inclui o perdão das dívidas que a empresa de metalurgia de Eike Batista teria em função de multas pelo uso de carvão vegetal feito de mata derrubada no Pantanal.

Sobre essas multas, Batista disse que as pagará, caso sejam consideradas legais pela justiça, já que ele entrou em ação judicial contra elas. Disse também que possivelmente irá fechar sua usina metalúrgica que fica perto do Pantanal pois só está lhe dando dor de cabeça.

É, o mundo está rodando de uma forma interessante e inesperada. Essa crise financeira mundial, que resultou até na compra de ações bancárias por parte de países (EUA, Inglaterra, Alemanha) que antes jamais teriam feito isso por considerarem "coisa de socialista", representa mais mudanças do que o mero espectador do capitalismo haveria de pensar pelos parâmetros de análise tradicionais.

O mundo muda, como dizia Camões. Os sinais estão por aí.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Índios Enawenê-Nawê destróem hidrelétrica em Mato Grosso



Um grupo de 120 índios Enawenê-Nawê, da região de Juína, em Mato Grosso, cujas terras são banhadas pelo rio Juruena, um dos mais belos rios brasileiros, invadiu o canteiro de obras de uma das 10 Usinas Hidrelétricas que estão em construção ou em vias de serem construídas -- somente naquela trecho do Juruena.

Essas obras fazem parte do PAC da região. Tem muito interesse econômico regional. Parte delas está sendo feita por capitais da família Maggi, do governador do estado. A FUNAI já tinha mandado advogados e funcionários, alguns meses atrás, para convencer os índios a aceitar as hidrelétricas, mas com tanta falta de tato que só causaram mais ojeriza nos índios.

Há tempos os Enawenê-Nawê vêm avisando de que não querem barragens no seu rio e nos afluentes. Esse povo indígena não se alimenta de animais de qualquer espécie e vivem exclusivamente de peixe e produtos agrícolas. Assim, o medo de que as barragens mudem o ciclo de vida dos peixes e diminua sua quantidade e variedade é muito razoável. Ninguém os convenceu do contrário, e até os ambientalistas brasileiros consideram isso muito provável. Sobretudo porque não é uma só hidrelétrica -- são 10 hidrelétricas e há planos para mais. O Juruena viraria uma espécie de rio europeu, com barragens a cada 30 km no meio da selva amazônica.

Os índios Enawenê-Nawê foram contatados em 1979 por uma equipe de missionários da OPAN liderandos pelo padre espanhol Cabañas. Eram cerca de 110 pessoas. Hoje somam quase 400. Falam uma língua do tronco linguístico Aruak, vivem da pesca e da agricultura. Eram inimigos dos Rikbatsa e Nambiquara, seus vizinhos. Seu território foi demarcado na década de 1980 e perfaz cerca de 620.000 hectares. Têm pretensão de aumentá-lo em mais 300.000 hectares, englobando o rio Preto, cujas águas são usadas para pescarias coletivas.

A invasão desse canteiro foi dura. Segundo informações de indigenistas que privam da sua amizade, os índios se comportaram com um espírito estratégico impressionante. Entraram no canteiro de obras, prenderam os funcionários, mandaram-nos embora, sem maiores violências, mas com decisão de guerra, e queimaram 12 caminhões e os alojamentos de todo mundo! Um prejuízo e tanto.

Notem que a seguinte matéria abaixo, de um jornal eletrônico do Mato Grosso, os demais povos indígenas, Rikbatsa, Nambiquara, Pareci e Mynky, cujas terras fazem parte da bacia do rio Juruena, aceitaram um acordo monetário de compensação. Não os Enawenê-Nawê.

Por sua vez, a FUNAI foi tomada de surpresa e não pode fazer nada. O administrador de Juína está de mãos atadas. A pressão sobre a FUNAI vai ser grande.

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Índios invadem e incendeiam obras de hidrelétrica em MT

Rodrigo Vargas, para a Folha de São Paulo

Cerca de 120 índios da etnia enawenê nawê invadiram e incendiaram na manhã de sábado o canteiro de obras da PCH (Pequena Central Hidrelétrica) Telegráfica, na cidade de Sapezal (430 km de Cuiabá).

Pelo menos 12 caminhões foram destruídos, além dos alojamentos e do escritório avançado da Juruena Participações Ltda. --consórcio de empresas que constrói a usina.

Equipamentos de informática e utensílios de cozinha do refeitório foram saqueados, diz a empresa. Os índios abandonaram o local em seguida.

"Eles chegaram armados com machados e pedaços de pau, expulsaram os funcionários e depois colocaram fogo em tudo", disse o coordenador-técnico ambiental da empresa, Frederico Müller.

Müller disse que ainda não é possível estimar os prejuízos com a ação. "É certamente algo que superará a casa do milhão."

A Telegráfica integra um complexo de dez usinas que será implantado ao longo de 110 km do rio Juruena, na região noroeste de Mato Grosso.

A Juruena Participações responderá por outras quatro obras do conjunto (Rondon, Parecis, Sapezal e Cidezal), enquanto o restante ficará a cargo da Maggi Energia, empresa do grupo empresarial do governador Blairo Maggi (PR).

Os índios reclamam que as obras vão causar impactos ambientais e reduzir a oferta de peixes. A Sema (Secretaria Estadual do Meio Ambiente), órgão encarregado do licenciamento ambiental, diz que o impacto será pequeno.

O secretário-adjunto da Sema, Salatiel Araújo, disse hoje "lamentar" o ataque às instalações da PCH. Segundo ele, dependia apenas dos enawenê nawê a assinatura de um acordo de compensação financeira em relação aos impactos previstos para a região --R$ 6 milhões, para as cinco etnias afetadas. "Quatro etnias aceitaram o acordo, mas eles não."

Desde o final de 2007, o Ministério Público Federal de Mato Grosso já propôs duas ações civis pedindo a suspensão das obras. Ambas questionam os impactos sócio-ambientais do projeto e o fato de o licenciamento ter sido feito por um órgão estadual.

Em abril, a Procuradoria obteve uma liminar no TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, mas a medida acabou cassada pelo ministro Gilmar Mendes, presidente do STF (Supremo Tribunal Federal).

A Folha tentou contato com os índios, sem sucesso. A assessoria do Grupo Maggi disse que um diretor estava em viagem e que somente ele poderia fornecer detalhes sobre os projetos da empresa na região. A reportagem conseguiu contato com o diretor da Juruena Participações, que prometeu ligar de volta. Até a conclusão desta reportagem, isso não ocorreu.

O administrador regional da Funai em Juína, Antônio Carlos de Aquino, chamou de "tragédia" a ação dos índios. "Foi algo totalmente inesperado."

A reportagem procurou o governador Blairo Maggi (PR), mas sua assessoria informou que somente a Sema se pronunciaria sobre o assunto.

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Índios "discordam" sobre construção de hidrelétrica no Juruena

Redação 24HorasNews, com ECO

Nesta semana, as cinco etnias indígenas que serão afetadas pela construção do complexo hidrelétrico do rio Juruena (MT) sentaram à mesa com representantes dos empreendedores Maggi Energia e Juruena Investimentos e Participações Ltda, secretaria estadual de meio ambiente e Funai para discutir cifras.

Índios rikbaktza, paresi, nambiquara e mynky concordaram em receber os seis milhões de reais relativos à compensação financeira por oito pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) em fase de instalação e não quiseram mais saber de discutir os impactos das usinas. Mas foram surpreendidos com a manifestação contrária dos índios enanwene nawe, que durante a reunião mostraram aos demais mapas da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) alertando para mais de 70 projetos hidrelétricos em estudos próximos às terras indígenas.

A posição dos enawene foi a de não discutirem nada enquanto não forem resolvidas as outras obras previstas. Eles se retiraram da reunião sem, no entanto, conseguir sensibilizar os demais grupos indígenas.

Em agosto, um parecer da Funai identificou erros grosseiros nos estudos que embasaram a concessão das licenças ambientais para os empreendimentos hidrelétricos, que subestimaram o impacto das usinas sobre o rio Juruena e áreas protegidas. A secretaria de meio ambiente do governo Maggi não admite falhas no licenciamento da Maggi Energia e da Juruena Investimentos.

domingo, 12 de outubro de 2008

Seis índios são eleitos prefeitos

Nessas eleições seis índios foram eleitos prefeitos. O número de vereadores ainda não foi computado. Por enquanto sabemos de 15, sendo sete nas cidades que elegeram prefeitos índios e também um Truká em Cabrobó, PE, dois Guarani em Japorã, MS, um Pareci, em Tangará da Serra, MT, um Xavante, em Campinápolis, MT, um Guajajara em Grajáu, MA, um Guajajara em Jenipapo dos Vieiras, no Maranhão, e um Canela, em Fernando Falcão, no Maranhão.

Vamos aguardar informações sobre possíveis outros índios eleitos vereadores.

Uma análise sobre o papel dos povos indígenas nas eleições onde eles constituem um segmento populacional importante, e, em alguns casos, majoritário, seria muito importante para entendermos a questão indígena na atualidade e as perspectivas para o seu futuro.

Em cidades como Marcação e Baía da Traição, na Paraíba; Cabrobó, Pesqueira e Brejo dos Padres, em Pernambuco; Santa Cruz Cabrália, na Bahia; São João das Missões, em Minas Gerais; Barreirinha, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga, no Amazonas; Campinápolis, no MT, Japorã, Amambai, Dourados e outras no Mato Grosso do Sul -- os índios vão ter importância política e política-eleitoral crescentes. Em algumas dessas cidades eles constituem maioria populacional, e só por divisionismo interno é que não elegem tantos vereadores e prefeitos.

Essas eleições, ao que parece, elegeram menos vereadores no que nas eleições passadas. Mas seis prefeitos foram eleitos e esses farão a diferença no futuro.

Eis os novos prefeitos indígenas:

Pedro Garcia, índio Tariana, da cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, pelo PT.

Mecias Sateré, índio Sateré-Maué, na cidade de Barreirinha, no Amazonas, pelo PMN

Eliésio Cavalcanti, índio Makuxi, da cidadezinha de Uiramutã, ao lado da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, pelo PT.

Orlando Ribeiro, índio Makuxi, na cidade de Normandia, ao lado da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, pelo PSDB

José Nunes, índio Xakriabá, reeleito na cidade de São João das Missões, em Minas Gerais, pelo PT.

Paulo Sérgio, índio Potiguara, na cidade de Marcação, Paraíba, pelo PT

Caetano fala de Yreô, o Kayapó indignado com Belo Monte

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Recomeça a luta dos fazendeiros contra a FUNAI

Passada a primeira fase das eleições, com as posições das câmaras municipais definidas (embora com 2º turno para prefeito em 27 cidades), as lides políticas anteriores voltam à sua vigência.

Pois bem, a grande disputa política dos últimos meses em relação aos povos indígenas -- sem tirar a importância da disputa no STF sobre a homologação da T.I. Raposa Serra do Sol -- tem sido a resistência posta pelos fazendeiros e políticos de Mato Grosso do Sul, aliados aos colegas do Mato Grosso, contra os objetivos da FUNAI de abrir novos processos de demarcação de novas terras indígenas naqueles estados.

A resistência aumenta nessa semana. O movimento está partindo para o confronto. A matéria abaixo, do Estado de São Paulo, reflete as ações que estão para ser tomadas contra a FUNAI, nesta semana e nas próximas, em função de sua alegada pretensão de demarcar entre 500.000 e 1.000.000 de hectares no Mato Grosso do Sul.

O movimento anti-indígena foi acirrado por erros estratégicos da atual gestão da FUNAI, que não mede conseqüências em relação às suas tomadas de posição. Dominada pela ideologia ongueira, a FUNAI esquece da História e da Política e joga os índios na arena sem armas para se defenderem. Os índios Guarani e os Terena estão sob dura pressão das autoridades locais do Mato Grosso do Sul, bem como dos fazendeiros, seus vizinhos, por estarem no bojo de uma campanha mal elaborada e mal conduzida. O desconforto é grande, as tensões aumentam e só com palavras e manifestos não vai adiantar nada.

O governador do estado, André Pulcinelli, que acabou de reeleger o prefeito de Campo Grande, se posicionou à frente dos fazendeiros, contra a FUNAI, em busca de apoios políticos mais amplos. Tem conversado frequentemente com o ministro da Agricultura, que até agora não tomou posição pública, mas que está pronto para fazê-lo. Tem influenciado a bancada ruralista no Congresso Nacional, que ontem convocou o presidente da FUNAI para audiência no dia 21 de outubro.

Sua secretária de Desenvolvimento Agrário, Tereza Cristina da Costa Dias, está em plena atividade pró-fazendeiros. Faz reuniões nas cidades, dá entrevista batendo forte contra a FUNAI, ataca os índios em suas pretensões pelo aumento de terras e argumenta que são Ongs internacionais que estão insuflando os índios. Disse ontem que o estado vai entrar no STF contra a FUNAI no que diz respeito às demarcações de terras indígenas no Mato Grosso do Sul.

Dá o exemplo da Terra Indígena Cachoeirinha, dos índios Terena, perto de Aquidauana. Essa terra foi demarcada no tempo do marechal Rondon, com 2.670 hectares. A população Terena mais que triplicou desde então. Queriam ampliá-la um tanto mais, talvez uns 500 hectares. O antropólogo Gilberto Azanha foi contratado pela FUNAI para fazer um relatório de reconhecimento da terra pretendida, e a aumentou para 36.000 hectares. O ministro Tarso Genro, inadvertidamente, por mal assessorado, publicou uma portaria de demarcação. Agora os Terena querem mesmo os 36.000 hectares. Voltar atrás é que não pode. Fazer o quê?

Eis o busilis da questão fundiária, segundo a secretaria de Mato Grosso do Sul. Ontem ela esteve em São Paulo conversando e obtendo o apoio da Sociedade Brasileira de Agricultura em sua luta contra a FUNAI e a demarcação dessas novas terras. Alega que a situação fundiária de Mato Grosso do Sul foi equacionada há muitos anos, que todos os fazendeiros têm suas terras regularizadas (média de 700 hectares por fazenda) e que não adianta dar novas terras aos índios Guarani que eles não a aproveitam de qualquer jeito.

São argumentos capciosos, mas tocam nas mentes dos correligionários e colegas de classe. A SBA vai trazer mais subsídios para os fazendeiros de Mato Grosso do Sul, inclusive de que a incerteza que foi implantada pela FUNAI está causando perda de novos investimentos na agricultura e consequentemente na possível queda da produção agrícola do Brasil.

No estado vizinho do Mato Grosso, na cidade de Brasnorte, foi feita uma carreata segunda-feira p.p. e depois uma reunião em que os principais líderes da classe de fazendeiros bateram forte contra a FUNAI e contra os índios. Tiveram a esperteza de levar alguns Xavante para discursarem a seu favor. O líder Xavante Domingos, da Terra Indígena Sangradouro, defendeu os fazendeiros pelo trabalho que fazem de produzir os alimentos para os brasileiros, mas também atacou a FUNAI por não fazer o necessário de que precisam para eles mesmos, os índios, produzirem e se tornarem independentes.

O pior de tudo é que os índios vão perdendo a confiança na FUNAI, o único órgão capaz ainda de defendê-los, pela desmoralização que o vai corroendo.

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Agronegócio vê área indígena como ameaça

O Estado de São Paulo, por Roldão Arruda

Os levantamentos para a redefinição dos limites das áreas indígenas em Mato Grosso do Sul estão provocando uma situação de insegurança em todos os setores do agronegócio, segundo informações da titular da Secretaria do Desenvolvimento Agrário e da Produção do Estado, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias. "A polêmica envolve a região mais nobre do Estado, com as terras mais férteis, nas quais se concentram 70% da produção de soja e 70% da produção de milho", disse a secretária, em debate promovido ontem, em São Paulo, pela Sociedade Rural Brasileira.

O clima de intranqüilidade, de acordo com a secretária, pode inibir investimentos. "Mato Grosso do Sul passa por um processo de desenvolvimento, com a chegada de recursos para o setor sucroalcooleiro, rizicultura e frigoríficos, que agregam valor à produção de bovinos, suínos e frangos. O momento dessa polêmica não poderia ser pior."

A secretária observou que os levantamentos que estão sendo feitos pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), com o intuito de ampliar as áreas indígenas, envolvem 26 municípios, nos quais predominam propriedades de médio porte, entre 600 e 700 hectares. "São terras totalmente regularizadas, com títulos concedidos pelo governo estadual ou federal", afirmou. "Não temos áreas devolutas nem temos áreas de invasões."

ONGS

O presidente da Sociedade Rural, Cesário Ramalho da Silva, defendeu a nacionalização do debate sobre demarcações de terras indígenas e criticou os estudos técnicos utilizados pelo governo federal. "Os laudos antropológicos que subsidiam o trabalho da FUNAI são feitos sob forte influência de ONGs estrangeiras, missões religiosas, entre outras organizações, que não deveriam ter essa autonomia", afirmou.

Na FUNAI, em Brasília, a situação dos índios guaranis de Mato Grosso do Sul é considerada uma das mais críticas do País. Com a expansão da pecuária e da agricultura no Estado, eles acabaram confinados em áreas consideradas pequenas, com elevados índices de violência, desnutrição infantil e também casos de suicídio entre jovens. Desde o início do primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, os diretores da FUNAI têm dito que a solução dos problemas dos guaranis, com a ampliação de suas reservas, é uma das prioridades em todo o País.

Os representantes dos proprietários rurais discordam, porém, dos métodos de demarcação de terras e levantam dúvidas sobre sua eficácia para resolver os problemas indígenas. "Em Miranda, um dos municípios onde a situação é mais crítica, os índios vivem numa área de 2.600 hectares e, até recentemente reivindicavam mais 500 hectares", contou ontem Tereza Cristina. "Mas, após um estudo encomendado pela FUNAI e realizado por um antropólogo ligado a organizações católicas, os 500 hectares se transformaram em 33 mil hectares, para uma população de 3 mil índios. Que critérios eles utilizam para mudanças dessa grandeza?"

O governo estadual e a FUNAI estão conversando, procurando soluções que não causem prejuízos ao agricultores. Não está descartada, porém, a possibilidade de uma ação cautelar perante o Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito de sustar as demarcações.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O Índio na História: Cap.10 - A Demarcação das Terras Indígenas

Neste Capítulo analiso como transcorreu o dramático processo de demarcação das terras indígenas no Maranhão desde o período imperial até o ano 2000. Há que se considerar que de lá para cá foram demarcadas as terras dos Krikati e dos Guajá, ambas homologadas quando eu era presidente da FUNAI.

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Capítulo X
A Demarcação das Terras Indígenas


Terras e territorialidade

A posse, o usufruto e o controle efetivo da terra pelos índios têm sido reconhecidos por todas as pessoas conhecedoras da questão indígena no Brasil, como sine qua non para a sobrevivência dos povos indígenas. A terra é a natureza culturalizada dentro da qual uma etnia indígena realiza suas virtudes e potencialidades. Um povo indígena sem terras suficientes para exercer seu modo de ser se vê forçado a mudar, a deixar de lado muitas características sociais e culturais que reforçam sua etnicidade, e se adaptar a um novo modo, mais parecido com o modo camponês de ser. No limite, a etnia pode se desagregar em grupos familiares ou indivíduos desconectados que passam a buscar sua sobrevivência por conta própria. Havendo a perda da convivência étnica, eventualmente os indivíduos desagregados perderão as principais condições de manutenção de sua indianidade, a qual desaparecerá em uma ou duas gerações (embora com alguma possibilidade de retorno). Já um grupo coeso de caboclos ou remanescentes indígenas que se auto-reconhecem como índios, que reclamam o direito sobre uma área de terra justificando-o na ocupação tradicional, ou em outro qualquer título de propriedade, tal como uma antiga doação de sesmaria, serão reconhecidos efetivamente como uma etnia, como índios, pelo estado e pela tradição brasileiros, mesmo que esse grupo não fale mais uma língua original nem tenha uma cultura substancialmente diferenciada da dos não indígenas e que consequentemente não possa ser claramente distinguido dos campônios locais.

Registrei um caso desse tipo, no qual um grupo de índios, ou mais propriamente descendentes de índios já bastante acaboclados, migrou do estado do Ceará para o Maranhão no início da década de 1950. Por muitos anos viveram em terras devolutas ou trabalhando para fazendeiros na região do baixo Mearim, até que, finalmente, foram acolhidos na T.I. Pindaré, dos Tenetehara. Os camponeses brasileiros os chamavam de “caboclos”, de quem se diferenciavam pelos traços físicos mais fortes de índios, mas os Tenetehara os chamavam de “cearenses”, como se quisessem exclui-los da noção de índio, embora não lhes pudessem negar o sentido de sua etnicidade. Esta se manifestava na forma de uma organização familiar extensa centrada nas figuras de um homem e sua esposa com seus filhos e filhas que agregavam genros e noras. As sessenta e tantas pessoas do grupo compartilhavam a certeza de que eram descendentes próximos de índios, e deviam respeito e acato ao velho patriarca que organizava e dirigia as atividades do grupo. Seu sistema de produção, suas crenças em geral e sua recreação eram essencialmente as mesmas dos camponeses brasileiros. Eles se diziam índios Timbira, o que naquela região significa simplesmente que não eram Tenetehara, ainda que as únicas palavras não portuguesas que eles sabiam eram palavras de origem tupi como pakó (banana) e chiram (farinha de mandioca). Tinham vindo da Serra Grande, na cordilheira da Serra do Ibiapaba, no Ceará, que foi historicamente território tanto de índios tupi (Tupinambá) como não tupi (Teremembé, Tucurujus e outros), os quais poderiam não ser de filiação timbira, mas certamente eram jê (Metraux 1963b: 573-574), e que foram aldeados em missão pelos jesuítas.

De todo modo, esses “Timbira” queriam se considerar índios e estavam tentando ser plenamente reconhecidos como tais pela FUNAI. Estavam no limite final de sua condição de indianidade. Para isto chegaram ao ponto de incentivar casamentos de suas jovens mulheres com homens tenetehara, ao invés de atrair jovens brasileiros para ser parte de seu grupo, como vinham fazendo na primeira geração de descendentes do patriarca. Quando da minha primeira visita a esse grupo, em novembro-dezembro de 1975, não havia ocorrido ainda nenhum casamento com Tenetehara, mas dois jovens Tenetehara estavam cortejando várias netas do velho e contavam claramente com seu apoio. Posteriormente a relação entre eles e os Tenetehara se azedou, não houve casamentos e eles terminaram sendo expulsos da T.I. Pindaré e se incorporando no meio da campesinada pobre da baixada maranhense.

A terra constitui o meio de produção fundamental de povos caçadores, coletores e agricultores. É dela que se retiram os bens de subsistência. Mas a terra significa também o espaço circunscrito onde uma cultura se territorializa, se faz real concreto, se faz ambiente de um povo. Sua amplitude, sua ecologia ganham significado através da cultura, e esta se condiciona pelos meios que encontra ao seu dispor. Terra, espaço, meio ambiente, portanto, constituem cultura materializada. Existem como modos de sobreviver, mas também modos de ser e pensar. Por isso é que os Tenetehara dizem que suas terras, os pedaços da natureza que eles têm para si, onde vivem as onças e os Àzàng, os cupelobos, os espíritos ou “donos” dos animais se tornaram suas por terem sido “amansadas”, isto é, domesticadas, culturalizadas, por eles.

Entretanto, por mais que se possa afirmar a imensa identidade de um povo com sua terra, não se pode mistificar o sentido de territorialidade. Os Tenetehara vivem nas matas das franjas da floresta amazônica e nas matas de transição por um processo histórico, o qual se realizou nos últimos 500 ou 600 anos. Talvez antes disso eles não estivessem no vale do Pindaré, e só a partir de meados do século XIX é que eles migraram para as matas de transição, as matas secas, e lá se adaptaram de tal modo, a “amansaram” tanto que consideram parte inerente de suas vidas. Por elas é que lutaram desesperadamente, especialmente na década de 1970. Não querem jamais de lá sair, mas este sentimento se dá por um sentido de identificação histórica, de formação cultural, não de participação mística. Isso vale para os Tenetehara como para todos os povos indígenas e todos os demais povos da humanidade.

Antecedentes de demarcação de terras indígenas

Antecede à época colonial a idéia de que aos povos indígenas deveriam ser concedidas glebas de terras para sua sobrevivência física e sua integração com o mundo colonial, e que sobre essas terras eles teriam prioridade de uso e posse. A coroa portuguesa via e agia como se as terras do Brasil fossem parte de seu patrimônio, embora muitos juristas da época não considerassem o direito de conquista como um direito sobre as terras e bens dos conquistados (Cunha 1987: 53-63). Em diversos alvarás e cartas régias, notadamente o alvará de 1º de abril de 1680, a coroa explicitou o reconhecimento dos direitos dos índios sobre as terras em que viviam, por “serem primários e naturais senhores delas”. Entretanto, a coroa portuguesa jamais se encabulou de mandar descer índios de suas terras para viver perto dos povoados portugueses, sendo eles de bom trato, onde lhes seriam dadas novas terras; nem vacilou em condenar povos indígenas à guerra ofensiva, se fossem de má índole, perdendo o direito às suas terras e bens, como explicita a carta régia de 9 de março de 1718 (ver Capítulo IV, pg. ???). No Maranhão diversas sesmarias foram doadas a povos indígenas durante a vigência do Diretório de Pombal (1757-98) e no ínicio do século seguinte, as quais foram objeto de disputas durante o regime imperial. Apenas uma delas, as terras dos “caboclos de Taquaritiua”, como vimos no Capítulo VI, continuou valendo por ter sido mantida pelos seus descendentes. As terras de sesmarias em geral compreendiam dois tamanhos padrões: ou de duas léguas em quadra, ou de uma légua de testada por três de fundo, se fosse à beira de um rio (Lisboa 1865, vol. ???).

Seguindo essa tradição é que em 1840 o tenente-coronel Luís Fernando Ferreira, a mando do então Marquês de Caxias, comprou de um fazendeiro local duas léguas em quadra para constituírem a primeira colônia indígena para os índios Tenetehara do rio Pindaré. Essa gleba de terras foi considerada ambiguamente tanto como terras da colônia quanto como terras dos índios, mas, uma vez extinta a Colônia São Pedro do Pindaré, foram entregues à Companhia Progresso em 1881, e hoje constitui a cidade de Pindaré-mirim.

Após a promulgação da Lei das Terras (1850) e sua regulamentação em 1854, a política indigenista de Diretoria Geral dos Índios procurou demarcar glebas de terras para diversos povos indígenas no Brasil. Todavia, apesar de ser reconhecido como importante, nenhuma gleba foi demarcada e registrada para os Tenetehara, embora se presumisse que as colônias indígenas e as diretorias parciais tivessem territórios próprios. A Diretoria Geral dos Índios reconheceu o direito indígena sobre algumas glebas de terras que haviam sido doadas anteriormente, ou eram reconhecidas como indígenas, tais como aquelas dos “caboclos” que viviam no Lugar de São José dos Índios e na vila de Vinhais, ambos na ilha de São Luís, no Lugar de Nossa Senhora da Lapa e Pias, na vila de Pinheiro e em outros lugares (Coelho 1990: 76), mas abandonou à sorte o destino dos índios Anapurus que tanto vinham pedindo providências sobre suas terras perto da vila do Brejo.

Havia, portanto, um reconhecimento oficial, que na prática demonstrou ser absolutamente negligente e relapso, por parte do Estado e da própria sociedade maranhense sobre a legitimidade dos índios terem suas próprias terras. Em virtude dessa atitude, a tarefa de delimitar e garantir terras para os índios do Maranhão foi insignificante durante o Império, e a República, nas suas primeiras duas décadas, pouco caso fez sobre o assunto. Alguns estados, como Rio Grande do Sul e Amazonas, chegaram a legislar sobre a questão, reservando terras para alguns povos indígenas. No Maranhão, entretanto, nada foi realizado até a chegada e instalação do SPI. Os índios Tenetehara, que se espalhavam por um vasto território em vários municípios mantinham suas terras por força de sua presença em aldeias e pelo uso dos recursos naturais de determinados territórios ainda indefinidos. Os novos imigrantes freqüentemente se aproveitavam dessa indefinição para estabelecer fazendas ou sítios, sempre tomando o cuidado para pedir licença e atar um relacionamento amistoso, de troca de bens e serviços, com os índios. Às vezes os Tenetehara se aborreciam com essas presenças e, ou os forçavam a sair ou saíam eles mesmos para outras áreas.

A delimitação e as demarcações da Terra Indígena Guajajara-Canabrava

No Maranhão, o SPI, isto é, sua 3ª Inspetoria Regional, tomou as primeiras providências em relação a terras indígenas movido pela urgência de responder ao bárbaro incidente contra os índios Canela Kenkateye, em outubro de 1913. Como vimos no Capítulo VIII, pelo menos uns 50 Kenkateye haviam sido massacrados em uma traiçoeira emboscada planejada e executada por fazendeiros vizinhos, que justificavam seu ato como o último recurso para evitar que os índios contiuassem a comer seu gado. Ora, essa mesma acusação vinha sendo jogada há anos contra os Canela Ramkokamekra e Apanyekra, e, em todos os casos, os índios se defendiam alegando que o gado solto dos fazendeiros invadia suas roças e campos de caça. Assim, parecia ao SPI e aos demais interessados que a delimitação e demarcação de terras próprias seria a solução. Não mais para os Kenkateye, que haviam perdido o fulcro étnico e seus sobreviventes estavam dispersos entre os Krahô, mais ao sul, no então norte de Goiás, e os Canela Ramkokamekra e Apanyekra. A criação da Vigilância de Barra do Corda, provavelmente a partir da chegada do coronel Pinto em dezembro de 1916, certamente teve como um dos objetivos resolver essa questão de delimitação de territórios indígenas. Mas veio também para desanuviar as tensões interétnicas, ou o potencial conflituoso que existia entre os Tenetehara, já de volta nas terras que haviam ocupado antes da Rebelião do Alto Alegre, e os regionais.

Os Tenetehara tinham uma concepção de que as terras eram suas porque nelas estavam na atualidade, delas faziam uso, mas também porque as haviam feito suas há muito tempo atrás, por lembrança histórica ou por conhecimento mitológico. Já o SPI tinha sua própria visão, à época mais utilitarista e dentro da tradição luso-brasileira, ainda sem conteúdo antropológico e ecológico. Tudo indica que os fundadores do SPI, apesar de reconhecer a importância das terras para os índios, não se preocupavam com a realização do conceito de territorialidade indígena. Seguiam a tradição do indigenato, segundo o qual os índios tinham um direito apriorístico sobre as terras em que viviam, mas cabia ao Estado, por conveniência de índios e brancos, reconhecer os tamanhos e limites adequados para serem doadas permanentemente as povos indígenas. Parece que a partir de 1940 o SPI passou a se preocupar com o tamanho adequado das terras a serem doadas aos índios, mas, efetivamente, só com a formulação dos termos de justificação do Parque Nacional do Xingu, escritos por Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão em 1953, é que se esboçariam os princípios antropológicos e ecológicos da noção de territorialidade indígena.

O SPI estava consciente de que a questão fundiária constituía o próprio cerne da elite rural brasileira e que fazia mister negociar com essa elite, os fazendeiros vizinhos aos índios, pois estes no mais das vezes consideravam suas as terras onde os índios viviam. Apesar de haver um argumento bastante claro de juristas como João Mendes Jr. (1912), segundo o qual as terras dos índios não podiam ser consideradas como “devolutas” (que ficaram, pela Constituição de 1891, na jurisdição dos estados, não da União), o fato é que ficou subentendido na própria criação do SPI que as terras dos índios deveriam ser garantidas em conjunção com os estados (Cunha 1987: 75). Só a partir da Constituição de 1934 e do Decreto Executivo nº 736, de 6 de abril de 1936, é que o direito dos índios sobre suas terras passaram exclusivamente à jurisdição federal. O título IV, art. 129, da Constituição rezava que “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nellas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes vedado aliená-las”. Já o Decreto nº 736 rezava que eram terras indígenas: “Aquelas em que presentemente vivem e já primariamente habitavam; aquelas em que habitam e são necessárias para o meio de vida compatível com seu estado social; aquelas que já lhes tenham sido ou venham a ser reservadas para seu uso ou reconhecidas como de sua propriedade a qualquer título”.

Assim, naqueles primeiros anos o SPI precisava convencer os políticos locais e negociar com os governos estaduais. Não há dados sobre quem fez as primeiras gestões e negociações com o governo do Maranhão para a demarcação das primeiras terras indígenas do município de Barra do Corda. Da parte política local, possivelmente foi Frederico Figueira, deputado estadual de Barra do Corda, ex-promotor municipal, jornalista respeitado, que saudara a chegado do SPI ao Maranhão com entusiasmo; da parte do SPI local foi Marcelino Miranda, que era o chefe da Vigilância na época (1917-22), e que iria deixar o órgão no final do ano para assumir uma cadeira de deputado estadual na Assembléia Legislativa do Maranhão. Ambos eram correligionários do caudilho maranhense Urbano Santos, que ditava as ordens políticas na ocasião. Não se sabe quem era o inspetor do SPI em São Luís, à época, provavelmente não mais o Capitão Pedro Dantas.

O certo é que aos 25 de abril de 1923 o governador recém-empossado Godofredo Viana já sancionava e promulgava a Lei Estadual nº 1.076 que ordenava a criação de uma reserva indígena para os índios Canela Ramkokamekra, com quatro léguas quadradas, e uma outra para os Tenetehara, com dimensões bem maiores e a ser localizada não muito longe da própria cidade de Barra do Corda. Eis como reza o artigo referente à área dos Tenetehara:

“Ficam também concedidas aos índios guajajaras, no município de Barra do Corda, uma área de terras com quatro léguas de frente, a partir do lugar Maré Chico, por uma e outra margem do rio Mearim, em direção sudeste, e seis léguas de fundo a esquerda do dito rio e para o lado direito até o rio Corda, compreendendo as actuaes aldeias Maré Chico, São Pedro, Colônia e Cachoeira”.

Na verdade, além das aldeias mencionadas, estavam inseridas nessa área as aldeias Coco, Lagoa Grande, Jenipapo e Sardinha, conforme se pode ver no mapa incluído no livro de Fróes Abreu (1931). Os limites dessa área haviam sido negociados com os fazendeiros e sitiantes vizinhos nos dois anos que precederam o decreto estadual e, pelo que indica o relatório do sub-inspetor do SPI Raymundo Nonato Maia (apud Bandeira 1930), todos haviam ficado de acordo. Os capuchinhos, que mantinham missão em Barra do Corda, aparentemente não foram consultados, mas até então não haviam tentado legalizar as terras onde haviam situado a malfadada missão do Alto Alegre, que ficou dentro da área reservada. A aldeia mais próxima dessa abandondada missão era Coco, mas toda aquela área se encontrava então despovoada.

Vê-se que área reservada comprendia um retângulo cuja altura é exatamente o trecho de quatro léguas abeirando o rio Mearim em montante a partir do ponto próximo da aldeia Maré Chico . O comprimento é dado pelos lados paralelos que saem das duas extremidades da altura; um deles sai pelo ponto Maré Chico em direção sudeste até tocar no rio Corda, e em direção noroeste por seis léguas; o outro lado sai do ponto quatro léguas acima do Maré Chico, no rio Mearim, nas mesmas direções. Considerando as curvas e inclinações dos rios Mearim e Corda, o comprimento desses lados era irregular. A área total projetada sobre um mapa foi calculada, com base na equivalência de 6,6 km para 1 légua, em 1942 em 164.557 hectares (SPI 1942).

O processo de demarcação começou logo após a promulgação da Lei com as primeiras providências tomadas pela 3ª Inspetoria. É possível que alguma tentativa de abrir as veredas das linhas secas e medi-las tenha sido feita nos primeiros anos, mas só a partir de 1928 é que foi contratado um agrimensor de Barra do Corda, Antônio Oliveira de Carvalho Netto, que ficou conhecido pelos índios e pelos locais como Dr. Carvalho. Em 1929, o sub-inspetor Raymundo Nonato Maia foi enviado pelo inspetor de Belém, Virgílio Bandeira, para verificar o progresso da demarcação. Maia chegou em Barra do Corda em fins de julho de 1929 e lá permaneceu até 31 de outubro, quando as chuvas e a falta de recursos alimentares, e aparentemente a pouca colaboração dos Tenetehara em fornecer alimentação para os homens que trabalhavam na demarcação, tornaram proibitivas a continuação da demarcação, e ele retornou a Belém.

O relatório de R. N. Maia, inserido no relatório geral do inspetor Virgílio Bandeira (1930), dá uma idéia bastante clara das dificuldades da demarcação in situ, bem como das primeiras disputas com um fazendeiro local Raimundo Rodrigues Lopes, representado por seu filho Zeca Lopes, e com alguns posseiros que lá já se encontravam na extremidade noroeste. Demonstra também como o próprio SPI foi abrindo mão da demarcação in toto. Zeca Lopes chegou a oferecer a pretensão de terras que teria à margem esquerda do rio Mearim, dentro da área projetada, pela soma de dois contos de réis, que Maia considerava exorbitante. No seu relatório geral à direção do SPI, de 5 de fevereiro de 1930, Vírgílio Bandeira prometeu que iria recorrer dessa pretensão ao “Congresso do Maranhão”.

Parece que o primeiro trecho demarcado foi a altura do retângulo, de Maré Chico até o lugar Xupé. Entretanto, já esse trecho terminou ficando curto em uns quatro a cinco quilômetros das quatro léguas (26,4 km) projetadas. Segundo os Tenetehara Silvaninho Pereira e Manuel Conrado, da aldeia Colônia, que eram jovens na época da primeira demarcação, a distância certa atingia o lugar Pedra Branca, onde estava a fazendola de um senhor Luís Gomes, que pediu aos Tenetehara para que ele pudesse permanecer por lá . Assim, a altura do retângulo foi diminuída para uns 22 quilômetros.

Do Xupé estava projetada uma linha seca rumo sudoeste até o rio Capim (cerca de 28 km), e rumo noroeste de seis léguas, ou 39,6 quilômetros. O relatório de Maia deixa claro que ele achava, junto com o Dr. Carvalho, que esse último trecho não devia ser completado integralmente, mas sim parar no Baixão de Grajaú, chegando até a margem esquerda da então chamada estrada real, que vai de Grajaú a Barra do Corda. Eis como se expressa o relatório de Maia: “... Porém, depois de estudar bem o caso, afim de evitarmos questões futuras, achei prudente fazer os limites da dita área na citada estrada do Baixão, com o fito único de não prejudicar velhos moradores alli existentes. Esses moradores acham-se localizados na margem esquerda da estrada [de Grajaú, certamente], sendo a direita completamente desabitada”. E prossegue: “Se, ao contrário, fôssemos tirar as seis léguas de fundos como manda a Lei, com isso só traríamos prejuízos aos moradores antigos daquella zona, o que não é justo. Vencendo todas as dificuldades que se nos apresentaram, conseguimos avançar 21 quilômetros de matta a dentro, a começar da margem do Mearim, rumo NO”. Entre essas dificuldades estava a recusa do índio Praxedes, da aldeia Coco, a uma légua e meia do ponto em que estavam, de dar ajuda à turma de demarcação, supostamente, segundo Maia, por incitamento do chefe da Vigilância, Raimundo Miranda.

Maia não podia desconfiar das confusões que isso causaria nos anos seguintes. É provável que esses mencionados “velhos moradores” fossem os primeiros a situar o lugar Cacetes, que mais tarde ficou sendo o povoado São Pedro dos Cacetes. Será que eles lá já estariam antes de 1922 quando foram negociados os limites da futura reserva com os moradores do município de Barra do Corda? Segundo o próprio Maia, quando da negociação dos limites, em 1922, todos teriam ficado de acordo. Portanto, ou os moradores de Cacetes não haviam sido consultados, ou não existiam na época, tendo migrando para lá logo depois. De qualquer modo, a incúria do ato de Maia e Carvalho justificou inadvertidamente os muitos moradores de São Pedro dos Cacetes, durante quase setenta anos, a acharem que estavam certos em lá ficar, porque era de justiça, tomando como verdadeira a demarcação primeira desse trecho. Porém tal demarcação não podia tirar a razão aos Tenetehara, que aceitaram os termos originais da Lei 1.076 de constituição de sua área, desimpedida dos sítios e fazendolas de terceiros.

Não há dados sobre se no ano seguinte, 1930, o SPI tentou prosseguir na demarcação, mas logo depois o assunto morreu, mesmo porque quase toda a década de 1930 iria ser de pouca atividade e poucos recursos para o SPI. A inspetoria do Maranhão havia sido desativada em abril de 1928 (e de fato já estava sob o controle da inspetoria do Pará desde 1925, ou antes) e a Vigilância de Barra do Corda ficaria em modorna até 1940.

Entrementes, a delimitação dessa reserva para os Tenetehara do município de Barra do Corda não contemplou as terras de diversas outras aldeias tenetehara. Num mapa apresentado por Fróes de Abreu, de sua viagem à região em 1928, haviam ficado de fora as aldeias Farinha, Morcego, Monte Frio (ou Montevideo, como às vezes é chamada) e Parrião, esta última nas imediações. Em meados da década de 1930 iria se formar a aldeia Uchoa, na margem esquerda do rio Mearim, três léguas a jusante de Barra do Corda, perto de uma famosa cachoeira local. Uchoa agregaria habitantes das aldeias vizinhas, principalmente Morcego e Monte Frio, e chegaria a ter cerca de 160 moradores em 1941. Adiante da reserva, já no município de Grajaú, ficaram de fora a aldeia Bananal, que se situava a oeste, à beira do riacho Enjeitado, que cai no Mearim, bem como as aldeias da Pedra, Campestre ou Cocal Grande, Morro Branco e Talhado, muito a montante no rio Mearim. Desde o início, a Vigilância tentou de várias formas, com presentes e admoestações, transferir os Tenetehara dessas aldeias para dentro da reserva. Todavia, os índios não se convenceram de que isto seria bom para eles e foram ficando em suas aldeias. Assim relatou Fróes de Abreu esse quiproquó cujo desdobramento terminou sendo positivo para os Tenetehara (Abreu 1931: 119). O próprio Marcelino Miranda, já então líder político de Barra do Corda e pai do chefe da Vigilância, Raimundo Miranda, em carta ao inspetor do Pará, Vírgilio Bandeira (apud SPI, Bandeira, 1930) expôs o seu plano de transferir todos os índios Tenetehara que estavam no município de Barra do Corda e nas imediações para dentro da reserva delimitada, argumentando que, dadas as precárias condições de assistência e força política, (as quais iriam piorar a partir de 1931), o SPI não teria alternativa melhor.

Enquanto isso, no distrito de Montes Altos, então parte do município de Grajaú, estava havendo uma tremenda pressão por parte de fazendeiros locais para expulsar os cento e pouco índios Krikati das terras que ocupavam . Uma vez mais é Marcelino Miranda quem se dispõe a ajudar ao órgão a retirá-los de lá e transferi-los para umas terras chamadas Rodeador, na beira do rio Corda, não muito longe das terras dos Canela, que estavam sendo compradas para esse fim por 576$000, o que significa que o órgão indigenista tinha verbas para essas eventualidades. Marcelino foi a Grajaú, recrutou alguns soldados e seguiu para as aldeias São Félix e Recurso, de índios Gaviões, mas todos se recusaram a vir para Barra do Corda. Daí ele se dirigiu para a aldeia Canto da Aldeia de onde convenceu doze Krikati a vir para o Rodeador. Porém logo os liberaria para que eles atraissem os demais que haviam se refugiado na fazenda de um Manduca Milhomem, que prontamente enviou uma conta de cobrança ao SPI de 500$000 réis pelas despesas que estava tendo com aqueles índios. Afinal, o perigo de ataque dos Guará e Lopes não fora sério, e este assunto foi abandonado. As terras dos índios Krikati ficariam em litígio com fazendeiros e posseiros até 1996, quando finalmente foram demarcadas.

Em 1930, motivado sem dúvida pelo processo de demarcação das terras dos Tenetehara, os frades capuchinhos se movimentaram para fazer reconhecer na justiça o direito que alegavam ter sobre as terras do Alto Alegre. Em 1931 o Juiz de Direito da Comarca de Barra do Corda, a pedido dos frades Estevão de Sexto e Hilário de Lodi, e tendo ouvido testemunhos de moradores dos lugares Cacete, Cocalinho, São Miguel e São Estevão, os quatro pontos que limitavam as terras do Alto Alegre, considerou legítimas as pretensões dos frades, que apresentaram uma cadeia dominial desde a compra de uma gleba de terras do fazendeiro Raimundo “Cearense” Ferreira de Melo (apud SPI 1931). Isto iria dar confusão a partir da década de 1950.

A segunda tentativa de demarcar essa área iria ser retomada a partir de 1940, quando o SPI nacional ganhou força novamente, aumentou suas verbas, reativou a 3ª Inspetoria em São Luís, criou planos e condições para demarcar essa e outras terras e passou a financiar uma turma de demarcação, isto é, algumas dezenas de trabalhadores braçais para demarcar terras indígenas, sob a liderança de um agrimensor.

Contratado em outubro de 1940 pelo inspetor José Gama Malcher, o agrimensor Jair Guimarães foi mandado em dezembro para concluir a demarcação da reserva Guajajara, iniciada pelo Dr. Carvalho em 1928. Em abril de 1941, na passagem de Malcher pela região, Jair Guimarães havia demarcado apenas 13.853 metros da linha que saía de Maré Chico, ao longo do rio Mearim, alegando que os rigores do inverno impediam a continuação do serviço. Nessa ocasião estava presente, entre outros o órfão Tenetehara de nove anos José Galdino, que, em 1998, se lembrava do serviço ter parado por falta de mantimentos para os trabalhadores. Malcher menciona em seu relatório, com extrema má vontade, que o velho mandão Marcelino Miranda pressionava Jair Guimarães para fazer “uma volta” na altura do Xupé, para deixar de fora parte das terras de Zeca Lopes, que era então o chefe político de Grajaú. A mesma contenda de 1929. Isto quer dizer que Jair Guimarães seguia o exemplo do Dr. Carvalho, diminuindo o tamanho da linha ao longo do rio Mearim em alguns quilômetros, deixando de fora o lugar Pedra Branca e em conseqüência toda uma extensa faixa de mais ou menos 67 km por 4 km, isto é, cerca de 27.000 hectares. Malcher reclama também que, tendo se casado com uma filha de Francisco Milhomem, Jair Guimarães passara a se abastecer no armazém do sogro, o que teria aumentado as despesas da Ajudância de Barra do Corda.

Por volta de setembro de 1941, em relatório do recém-nomeado inspetor do Maranhão, José Teodoro Mendes, o referido agrimensor havia demarcado as linhas que saem do rio Mearim rumo ao rio Corda, somando 19 quilômetros a linha que vem de Maré Chico, e 28 quilômetros a que sai do Xupé, por causa das inclinações dos rios Mearim e Corda. O último dado a respeito dessa demarcação é um telegrama que Malcher passou de Belém para Barra do Corda, em 1º de outubro de 1941, no qual admoestava Jair Guimarães a concluir a demarcação da reserva projetada e não se distrair na construção da sede do posto Tenente Manuel Rabelo recém-criado.

Não sabemos se Jair Guimarães chegou a concluir essa demarcação, isto é, se ele abriu as picadas que formariam as linhas secas que saem dos dois pontos no rio Mearim rumo noroeste. É provável que sim, embora não haja dados sobre isso, a não ser uma nota do inspetor Dr. Sebastião Xerez, em 1949, de que toda a reserva estava demarcada desde 1942 com marcos a cada um quilômetro. Não há dados sobre disputas ou negociações com os moradores do lugar Cacetes, ou com o fazendeiro Zeca Lopes na ocasião. Jair Guimarães trabalhou em outras demarcações na época, como as terras reservadas aos Canela Ramkokamekra pela Lei de 1923, e uma projetada para os Apanyekra .

É importante notar aqui que Jair Guimarães foi o agrimensor responsável pela delimitação, por sugestão de Malcher, de outras áreas indígenas, que infelizmente não chegaram a ser demarcadas. Uma delas seria uma área de 52.272 hectares entre Barra do Corda e o povoado (ex-aldeia) Naru, onde estavam as aldeias de Farinha (33 Tenetehara), Mundo Novo (99) e Boa Vista (61). Outra, também nas vicinidades, teria 41.382 hectares e englobaria as aldeias Taboqui (?), Montevidéu (?) e Uchoa (160 Tenetehara). Essas propostas estão contidas no relatório geral do SPI de 1942, mas não foram levadas adiante, especialmente por causa da chegada, em 1944, da Companhia Agrícola Nacional do Maranhão, a “Colônia Agrícola” de Barra do Corda, que tomou exatamente essas terras como seu patrimônio.

Jair Guimarães continuou como chefe da turma de demarcação até junho de 1946, quando Raimundo Miranda foi transferido de Barra do Corda para Belém e a 3ª Inspetoria sofreu algumas mudanças administrativas. É possível supor que Jair Guimarães, por pressão local, inclusive do chefe da Ajudância, não tenha concluído a demarcação. O novo inspetor Mota Cabral o demitiu alegando falta grave no serviço, sendo substituído pelo agrimensor Arnaud Guedes de Paiva, que ficou no SPI até a chegada do Dr. Sebastião Xerez, em agosto de 1948.

O Dr. Xerez chegou com idéias próprias e força de vontade para demarcar as diversas terras que haviam sido projetadas por Malcher desde 1941-42. Sua primeira providência foi contatar e comunicar ao governo do estado do Maranhão seus planos de demarcação das terras indígenas e dele requisitar a cessão de alguns agrimensores para trabalhar no SPI. Para demarcar uma vez mais a área já reservada pediu os serviços do Dr. Durval Henrique da Silva, agrônomo da Colônia Agrícola, que chegava no município com muita força política e recursos. Entretanto, sentindo que com isso ele poderia ficar nas mãos do diretor da Colônia, o Dr. Eliezer Rodrigues Moreira, que se tornaria figura política importante na região, Xerez desligou o Dr. Durval e requisitou o agrimensor Elzemar Cunha.

Desde 1944 a 3ª Inspetoria do SPI e a Ajudância de Barra do Corda vinham sendo pressionadas para retirar os Tenetehara que viviam nas aldeias fora da área indígena, Uchoa, Farinha, Boa Vista, Montevidéu, cujas terras não demarcadas a Colônia Agrícola havia recebido do governo federal. A aldeia Descanso (provavelmente a antiga Parrião), também estava fora, embora próxima, dos limites da reserva, e seus habitantes se mudaram sem problemas. Xerez realizou esse ato no verão de 1949. A maioria dos índios da aldeia Uchoa foi para uma nova aldeia na beira do rio Corda, perto da aldeia Sardinha e confronte às terras do Rodeador, onde lá ficariam por uns dois, três anos até saírem e situar as terras da antiga aldeia Canabrava, no extremo norte da área reservada. Outros saíram para fazer roças na beira do rio Mearim, dentro da área reservada, onde se deram mal com epidemias de gripe e tifo. Alguns outros, provavelmente aqueles saídos da aldeia Descanso, foram situar as terras ao norte da reserva, perto da aldeia Leite, já existente desde a década de 1930, onde fundaram a aldeia Lagoa Comprida.

Em seu relatório para o ano de 1948 Xerez escreveu que ao visitar Barra do Corda fizera uma petição ao juiz da comarca para notificar quem estivesse nas terras indígenas para desocupar. Afirmou outrossim que as terras da reserva indígena estavam delimitadas com marcos de quilômetro a quilômetro, e que não houvera “oposição legal de terceiros senhores e possuidores nestes últimos vinte anos”. Com efeito, um croquis de um mapa da reserva feita pelo agrimensor Elzemar Cunha, provavelmente de 1949 ou 1950, consta os pontos já definidos desde 1929. A área é estimada em 127.000 hectares, o que indica tanto que o marco montante do rio Mearim teria permanecido no Xupé e que as linhas secas rumos noroeste estavam aquém das seis léguas projetadas.

Apesar dos esforços iniciais e, na verdade, da quase certeza da demarcação da reserva, essa demarcação não iria ficar confirmada e oficializada em definitivo na década de 1950. É que no decorrer daqueles anos as disputas com os frades capuchinhos e com novos moradores de São Pedro dos Cacetes deixaram Xerez sem condições políticas de assegurar a demarcação oficial.

Em novembro de 1960, em ofício ao Diretor do SPI, Xerez propôs uma solução para viabilizar a demarcação oficial da reserva, a qual, no seu entender, contemplaria os interesses de todos: os capuchinhos do Alto Alegre, os moradores de São Pedro dos Cacetes e os Tenetehara, tanto os das aldeias dentro da reserva, quanto os que se achavam em novas aldeias fora da área, Leite, Lagoa Comprida e Porco. Diante do crescimento de São Pedro dos Cacetes, que Xerez calculava em mais de 2.000 pessoas (cálculo esse que se manteve inflacionado nos anos seguintes), e dos títulos documentados dos capuchinhos sobre as terras do Alto Alegre, que compreendia um retângulo de 6.600 metros por 12.000 metros, Xerez não via outra possibilidade senão abrir mão dessas terras, recompensando as perdas com o prolongamento das linhas secas rumo noroeste até alcançar o rio Grajaú, englobando o baixão que vem das aldeias Lagoa Comprida, Leite e Porco, que estavam fora da reserva projetada. Xerez calculou que como isso o SPI perderia cerca de 3.200 hectares - e se livraria de “contendas com intrusos apoiados por chefetes políticos” - mas ganharia uma área bem maior, embora não calculada . Xerez pediu ao Diretor do SPI a aprovação dessa proposta e o encaminhamento para o governador do estado para que este providenciasse a área de compensação em terras devolutas. Todavia, essa proposta não foi levada adiante, e no ano e meio que lhe restou, Xerez iria se concentrar na tentativa de encontrar uma solução para as terras do posto indígena Gonçalves Dias, no baixo Pindaré.

Assim, a demarcação com registro oficial da primeira área de terras dos Tenetehara ficou irrealizada uma vez mais. Nos anos seguintes, a preocupação dos diversos chefes da Ajudância de Barra do Corda, tais como Olímpio Cruz, Júlio Alves Tavares e Hugo Ferreira Lima, iria aumentar com a entrada cada vez mais intensa de novos moradores em São Pedro dos Cacetes, no Alto Alegre, onde os capuchinhos passaram a arrendar lotes de terra para lavradores pobres, e em novos povoados que surgiram ao redor, como Centro do Meio, ou de Felipe Preto, Jacaré, Sabonete, Pau Ferrado, Sumaúma e outros. A passagem do SPI para a FUNAI aumentou a confusão por algum tempo, tanto que até os próprios chefes de Ajudância aceitaram a presença de invasores e não se encabularam em cobrar uma renda pelo uso das terras da reserva indígena, ou das terras pretendidas para os índios, como aquelas próximas às aldeias Lagoa Comprida e Leite.

Os Tenetehara, entrementes, permaneciam firmes no seu propósito de assegurar as terras que lhes haviam sido reservadas e tantas vezes já demarcadas in situ. Olhavam a enchurrada de imigrantes com apreensão, buscavam entabular um relacionamento cordial, mas insistiam com todos que as terras que eles estavam situando haviam sido reservadas para os índios. Eram contestados pelos antigos e primeiros moradores de São Pedro dos Cacetes, que relembravam incidentes de demarcações que haviam deixado parte das terras dos Cacetes fora da reserva. Na argumentação histórica os moradores diziam que São Pedro dos Cacetes existia desde meados de século XIX, e que o nome Cacetes viera da brincadeira de bater paus que fizeram as duas turmas de abertura da estrada real entre Grajaú e Barra do Corda ao se encontrarem precisamente naquele local. Já os Tenetehara diziam que o nome vinha de uma lagoa, Wyràhangpaw, ou Lagoa dos Cacetes, onde, muito anos atrás, uns Tenetehara haviam matado dois índios Timbira e deixado, como de costume, as bordunas ao lado dos cadáveres. Duas histórias interessantes, ambas semi-históricas e semi-mitológicas. O certo é que, se a estrada real existia desde pelo menos a década de 1880, senão antes, o lugar Cacetes, como aglomerado de civilizados, não existira nem antes nem durante a Rebelião do Alto Alegre; portanto, só se formara após, provavelmente na década de 1920, depois das negociações que delimitaram a área indígena decretada em 1923. Os Tenetehara sabiam disso e assim não se intimidavam com as histórias dos velhos moradores e objetavam com a segurança de quem estivera presente nas primeiras negociações, convencendo dessa forma velhos e novos servidores do órgão indigenista.

Por sua vez, a presença de aldeias fora dessa reserva também exigia do SPI e da FUNAI um posicionamento positivo. Vimos que Xerez previra a demarcação de uma área para as aldeias que estavam além do limite setentrional da reserva indígena, e antes, em 1941, Malcher havia planejado a demarcação de outras áreas indígenas contemplando quase todas as áreas de aldeamento tenetehara. Vale notar outrossim que, em 1949, Xerez registrou ter conhecimento dos remanescentes dos Timbira Crenzés e Pobzés, que haviam entrado em relacionamento com a sociedade maranhense em 1854, na beira do rio Mearim, na altura de onde é hoje a pujante cidade de Bacabal, tendo vivido nos anos do Império sob o controle da Colônia Leopoldina. O SPI até então não tomara conhecimento desses índios, mas eles tinham condições de recuperar sua indianidade, pois ainda falavam a língua nativa, além do português, e guardavam a memória de uma gleba de terras que lhes havia sido reservada nos tempos do Império. Xerez anotou que essa gleba se limitava, “pela frente, com a margem direita do igarapé Bambu, tributário da margem direita do rio Mearim. Pelos fundos, com com a margem esquerda do igarapé Salgado. Pelos lados de baixo e de cima com terras devolutas”. Infelizmente, nenhum esforço foi feito para assistir a esses índios, que foram perdendo as condições de sobrevivência étnica onde viviam. Em 1960 seriam transferidos para o posto Gonçalves Dias, onde ainda hoje subsistem.

Por todos os motivos administrativos e políticos, inclusive a falta de apoio dos governadores do Maranhão, como se queixou Xerez, anos depois, ao sertanista João Américo Peret (1964), a demarcação oficial dessa área de terras dos Tenetehara, bem como as demais demarcações previstas, esboçadas, delimitadas e até demarcadas in situ não se realizaram nos tempos do SPI, e só se realizariam no auge da força política e administrativa da FUNAI, no período entre 1974 e 1979, sendo presidente da FUNAI o general Ismarth de Araújo Oliveira, no governo do general Geisel.

Em 1976, a FUNAI reiniciou pela quarta vez o processo de demarcação da Área, depois Terra Indígena Guajajara-Canabrava, como passou a ser chamada, enviando o antropólogo Alceu Cotia, junto com uma equipe do Projeto RADAM, para fazer um levantamente da situação social e fundiária e reconhecer uma vez mais os limites da área reservada. Em seu relatório, Cotia parece ter ficado impressionado com a quantidade de invasores da reserva. Apresenta o povoado do Alto Alegre com uma população de cerca de 300 famílias, enquanto São Pedro dos Cacetes abrigaria 7.000 pessoas. Ambos os números parecem bastante exagerados, e serão usados como bandeira pelos defensores dos interesses desses povoados. Em 1980 equipes da FUNAI e do governo do Estado fizeram um recenseamento da população de São Pedro cujo número chega a apenas 511 famílias com um total de 2.656 pessoas. Em 1990 uma equipe de borrifadores de casas da SUCAM contou 459 prédios ocupados em São Pedro, com uma população de 1.639, números estes muito inferiores aos alegados anteriormente, embora muitos já tivessem abandonado o povoado.

O grupo de trabalho de que fez parte Alceu Cotia foi criado por portaria da presidência da FUNAI no momento em que o órgão indigenista dava um ímpeto na demarcação de terras indígenas em todo o Brasil. Com efeito, a FUNAI tentava responder tanto a um clamor nacional quanto à pressão que os próprios índios vinham exercendo para que o órgão indigenista tomasse as medidas necessárias contra os invasores velhos e novos de suas terras. Nesses anos de muita agitação social e política, todo o Maranhão fervilhava com a entrada maciça de lavradores pobres em busca de terras, bem como de médios e grandes fazendeiros de outros estados que procuravam terras baratas para comprar e instalar novas fazendas. A presença dos povoados de São Pedro dos Cacetes, Alto Alegre, Centro do Meio, dentro da área indígena, bem como o aumento populacional em povoados como Sabonete e Jenipapo dos Vieiras, situados nos limites externos da reserva, intensificavam a tensão interétnica em toda a região.

O relatório Cotia não se apresentou de todo favorável às pretensões dos Tenetehara. Sugeria que o povoado São Pedro dos Cacetes fosse considerado como estando fora da nova área a ser demarcada, e que as terras do Alto Alegre também deveriam ser não incluídas pois seriam de propriedade legítima dos capuchinhos. Entretanto, para que isso pudesse ser feito, a área iria ser deformada dos limites originais da Lei Estadual de 1923. A pressão dos índios sobre os funcionários da Ajudância de Barra do Corda e da 6ª Delegacia Regional da FUNAI, em São Luís, fez com que a presidência da FUNAI, em Brasília, lançasse, em março de 1977, o edital de demarcação administrativa da área a ser chamada de Guajajara-Canabrava. Os limites consignados no edital incluíam os povoados referidos e grande parte das terras usadas por seus moradores. Previa uma área de 127.648 hectares, a qual, quando terminou de ser demarcada em campo, em novembro de 1977, ficou avaliada em 131.868 hectares. Esse pequeno aumento se deu porque, a pedido dos Tenetehara e com a anuência do chefe da Ajudância de Barra do Corda, a empresa de demarcação fez um desvio de angulação do ponto Maré Chico rumo ao rio Corda, o qual englobou uma cachoeira considera de suma importância para os Tenetehara. Anos mais tarde, em nova medição topográfica a área ficou com 137.400 hectares. Entretanto, como pode ser deduzido, a altura do retângulo ficou no Xupé, conforme as demarcações de 1928, 1941 e 1949, e as seis léguas rumo noroeste não foram completadas, conforme as ponderações de 1928. Perdeu-se com isso uma área de pelo menos 27.000 hectares.

Os Tenetehara passaram por uma verdadeira guerra de confrontos e de nervos para demarcar essa terra indígena e outras do município de Barra do Corda, de Grajaú, Amarante, Bom Jardim e Carutapera. Entre os principais líderes desse período, destacam-se os velhos Antonio Goiabeira e Ribeiro, Antonio Lima Guajajara, Zé Lopes, Zezinho Potiguara, Adriano Carvalho, Celestino de Souza, José Galdino, José Pompeu, Antônio Mariano, Alderico Lopes, Virgulino Guajajara, Japonês e outros mais. Em vários confrontos armados, tanto posseiros e invasores de terras indígenas quanto índios foram feridos e mortos. Em maio de 1978, o paiol de arroz do Centro do Felipe Preto foi saqueado pelos Tenetehara da aldeia Canabrava. Em julho, foi a vez do povoado Couro Dantas sofrer a queima de seus armazéns. Num conflito com moradores do Alto Alegre, em julho de 1979, um posseiro foi morto pelos índios. Em fevereiro de 1980, um fazendeiro no lugar Arranca foi morto acidentalmente por uma Tenetehara. Em represália, e num ato de covardia e brutalidade odienta, os velhos Tenetehara Mateus e Moacir Carvalho foram assassinados friamente na beira do rio Mearim por um bando de vingadores. No julgamento do principal acusado, que só iria ocorrer em 1991, sua absolvição foi aplaudida de pé, recaindo a culpa sobre os soldados da Política Militar de Barra do Corda.

A presteza na demarcação dessa área evitou maiores conflitos sangrentos. Ela foi realizada no momento em que chegava a Barra do Corda, para ser o chefe da Ajudância que jurisdicionava sobre os índios e as terras indígenas desse município, o sertanista José Porfírio Fontenelle de Carvalho. Entre 1977 e 1980, Carvalho tomou as rédeas do processo de demarcação da T.I. Guajajara-Canabrava, com todos os perigos e ameaças por que passou, e a demarcaria antes de ser transferido do seu posto. Em 1978 Carvalho teve a abilidade de aproveitar da necessidade que tinha a empresa Eletronorte em passar as linhas de alta tensão elétrica pela área indígena para obter uma boa recompensa e criar projetos econômicos para os Tenetehara e assim consolidar sua posição de força com os índios e os demais moradores. Tomou também a iniciativa de demarcar as áreas das aldeias que desde sempre estavam fora dessa terra indígena, as quais se tornaram as terras indígenas tenetehara Lagoa Comprida e Urucu-Juruá. Tomou as providências para a demarcação da T.I. Geralda-Toco Preto, na beira do rio Grajaú, onde sobreviviam os remanescentes dos Timbira Krepumkateye, do primeiro e abandonado posto Araribóia. Reavivou a demarcação da área do Rodeador, comprada em 1928 para os Krikati, a qual ficou de usufruto para os Tenetehara e Canela. Ajudou também na demarcação das terras indígenas Bacurizinho e Morro Branco, no município de Grajaú, esta última praticamente um bairro no perímetro urbano da cidade. Carvalho foi demitido da FUNAI em 1980, junto com mais 40 indigenistas, alegadamente por terem criado uma associação de classe; foi reintegrado em 1984, passando a supervisionar a 6º Delegacia Regional no uso das verbas obtidos pelo acordo entre a FUNAI e a Companhia Vale do Rio Doce; foi demitido em setembro de 1985, em virtude da guinada antiindígena dada no governo Sarney, mas continuou a trabalhar pelos Tenetehara e outros índios do Maranhão, Pará e Amazonas até os dias de hoje, como consultor da Eletronorte, cujas hidrelétricas e linhas de transmissão impactam terras indígenas.

Outro funcionário da FUNAI que se destacou naqueles primeiros anos por sua determinação e destemor foi o chefe do P.I. Canabrava, Eliomar Gerhardt, que, por seu enfrentamento com os posseiros dos povoados Centro do Meio e Alto Alegre, terminou sendo retirado da região por perigo de morte. Nas demarcações de outras terras indígenas destacaram-se Jorge Muniz, Mário Daltrozo, Domingos Faria, Luís Jatobá, Raimundo Mourão e outros. A 6ª Delegacia Regional e os diversos delegados da época, Francisco Rennó, Alípio Levay e Armando Perfetti, este último sempre a contragosto, se curvaram à determinação dos Tenetehara de que era preciso fazer a desintrusão dos invasores, tradicionais ou recentes, de expulsar os frades capuchinhos e os arrendatários do Alto Alegre, os moradores de São Pedro dos Cacetes e de outros povoados, bem como estabelecer novas terras indígenas para outras aldeias fora daquela reserva. De algum modo eles têm uma pequena parte no mérito dessas lutas.

Nesses anos, e até 1983, a FUNAI tinha a prerrogativa constitucional de demarcar terras como terras indígenas por um simples processo administrativo. Aquilo que os índios e um laudo histórico-antropológico determinassem que fosse terra indígena, seria terra indígena, independentemente de quem lá estivesse vivendo ou alegasse posse ou propriedade. De modo que, para todos os efeitos legais, a demarcação da T.I. Guajajara-Canabrava foi concluída no segundo semestre de 1977, passando por cima de todas as reclamações dos moradores de São Pedro dos Cacetes, dos frades capuchinhos e dos políticos de Barra do Corda e Grajaú, particularmente o deputado estadual Fernando Falcão, que buscavam votos entre esses moradores.

Demarcada, sim, englobando dois povoados, sim, mas com quê garantia de inviolabilidade e até quando? Essa pergunta ficou no ar durante muitos anos. Em 1979, o deputado Falcão, que fazia uma carga política e pessoal duríssima contra o sertanista Carvalho, acusando-o de subversivo e insuflador do ódio indígena, morreu de infarto no coração. Os moradores dos povoados incrustrados ficaram sem seu grande defensor, e Carvalho ficou com um inimigo a menos, mas com o ódio rancoroso da população, que não o perdoava por ter se colocado ao lado dos Tenetehara na sua determinação em demarcar as terras desses povoados. Em 1980 o governo federal repassou ao governo do Maranhão uma verba suficiente para retirar os posseiros de São Pedro dos Cacetes e transferi-los para terras que estavam sendo abertas no rio Buriticupu, próximo à sua desembocadura no rio Pindaré. Eram terras boas, de mata, terras que até já haviam pertencido aos Tenetehara no século passado, mas que sofriam pela falta de água corrente. Por esse e outros motivos esse projeto de colonização falhou. Ao que tudo indica, a verba de indenização e remoção dos posseiros foi desviada para outros fins, e o povoado permaneceu como estava.

Por mais uma década e meia, São Pedro dos Cacetes foi ficando, incrustado nas terras dos Tenetehara; porém, sob a pressão contínua dos índios cujas aldeias avizinhavam. De vez em quando estouravam brigas pessoais entre Tenetehara e moradores do povoado, mas por sorte nunca resultaram em conflitos armados de maiores proporções. Os políticos tentaram preservar o povoado de vários modos, inclusive elevando-o a município após a proclamação da nova constituição do estado do Maranhão, em 1990. Desfeito esse golpe legislativo pelo Supremo Tribunal Federal, seus moradores foram aos poucos vendo que era impossível viver por lá, mesmo porque as terras que ocupavam em roças haviam se desgastado pelo uso contínuo, e a região sofria pela falta de água perene para beber e cuidar dos animais. O próprio povoado do Alto Alegre já não lhe servia de apoio, pois fora desmobilizado em 1981, quando os capuchinhos, pressionados pela ala indigenista da Igreja Católica, se retiraram, desistindo (ao menos temporariamente, já que uma vez mais entraram com um processo na Justiça) de sua pretensão de propriedade. Seus moradores, diversos dos quais haviam comprado lotes dos frades, foram indenizados e transferidos para outras áreas disponíveis ao assentamento. Ainda assim havia resistências políticas para a manutenção do povoado, as quais foram afastadas pela decisão da governadora do estado, Roseana Sarney. Com recursos de empréstimo do Banco Mundial ao estado do Maranhão, São Pedro dos Cacetes foi definitivamente abolido pela transferência de todos seus moradores. Muitos moradores já haviam se retirado para outros assentamentos e para a cidade de Grajaú. Cerca de 85 famílias receberam lotes de 15 hectares, com casas e infra-estrutura na antiga fazenda Remanso, a qual faz limite com um canto da T.I. Guajajara-Canabrava, provavelmente na parte que foi deixada de fora dos termos originais da Lei Estadual de 1923 . Os Tenetehara, como haviam feito após a saída dos moradores do Alto Alegre, festejaram muito, tomando formalmente o terreno e se apoderando das coisas que foram deixadas para trás.

Somando cerca de 2.100 pessoas, em 18 aldeias, em dezembro de 1979, em outubro de 1998 eram quarenta aldeias na T.I. Guajajara-Canabrava somando 4.464 pessoas. Recortada pela estrada BR-226, que estava finalmente sendo asfaltada, os Tenetehara dessa terra indígena se sobressaem como índios determinados a defender suas terras e buscar seu espaço na sociedade regional. Já tentaram algumas vezes eleger vereadores no município, mas não conseguiram. O atual chefe da Administração Regional de Barra do Corda é um mestiço Tenetehara, e tudo indica que desse posto não mais abrirão mão.

Vejamos agora como as demais terras indígenas tenetehara foram demarcadas. O quadro seguinte resume os dados principais dessas áreas, incluindo a Guajajara-Canabrava.

Quadro 1

Terras Indígenas dos Tenetehara no Maranhão

Terra Indígena Área (hectares) Município População (1999)
Guajajara-Canabrava 137.400 Barra do Corda 4.464
Lagoa Comprida 13.198 Barra do Corda 470
Urucu-Juruá 12.697 Grajaú 442
Bacurizinho 82.432 Grajaú 2.333
Morro Branco 49 Grajaú 220
Araribóia 413.288 Grajaú, Amarante 3.290
Pindaré 15.002 Bom Jardim 600
Caru 172.667 Bom Jardim 110 __________ Total: 846.462____________________ ____ _ Total: 11.929 Fonte: FUNAI, 1998

Terra Indígena Lagoa Comprida

Em meados da década de 1950 algumas famílias tenetehara oriundas das aldeias que haviam ficado fora da reserva projetada, sobretudo das aldeias Descanso, Mundo Novo e Farinha, se deslocaram para um baixão que escoa as águas no rio Grajaú formando algumas lagoas perenes. Criaram as aldeias Lagoa Comprida e Porco, já havendo desde a década de 1930 a pequena aldeia Lagoa do Leite. Em 1960 Xerez planejou que a T.I. Guajajara-Canabrava deveria ser extendida para abarcar essas aldeias e seguir até a própria beira do rio Grajaú, projeto que não foi aprovado pela direção do SPI e não foi levado adiante.

Nos anos seguintes, algumas dezenas de famílias vindas do Piauí e Ceará foram assentando e abrindo roças nessa micro-região, agregando-se em torno de um povoado que ficou conhecido como Centro do Meio, ou Centro do Felipe Preto. Desde fins da década de 1950 o SPI havia colocado como responsável por essas aldeias um descendente de Tenetehara, Arão da Providência Araújo, que ainda falava a língua, mas cuja família vivia em Barra do Corda, tendo sido seu pai criado no Instituto Indígena dos capuchinhos, entre 1897 e 1901, e se tornado músico, como o mérito de ter composto o hino da cidade. Arão ficou na aldeia Lagoa Comprida por alguns anos, sendo substituído, por volta de 1965, pelo Tenetehara Domingos Soares, natural da região, mas que havia sido educado em Barra do Corda e São Luís, e se tornara funcionário do SPI. Domingos não vacilou em cobrar renda dessas famílias, certamente que ordenado pelos seus superiores em Barra do Corda. Se havia algum entendimento e camaradagem entre lavradores e índios, conforme ponderaram os moradores desse povoado por ocasião da sua retirada, em 1979, o fato é que a inimizade se desmoronou a partir de meados da década de 1970, culminando num ataque que os índios da aldeia de Canabrava, onde havia um posto indígena, fizeram ao Centro do Meio, queimando os seus paióis de arroz e assustando os moradores, após um primeiro assalto a um grupo de índios feito pelos moradores do Centro umas semanas antes. Isto se deu em julho de 1978 quando essas terras já haviam sido demarcadas in situ e os moradores teimavam em lá permanecer se fiando no apoio dos políticos de Barra do Corda, especialmente o deputado Fernando Falcão.

A Terra Indígena Lagoa Comprida compreende uma área de 13.198 hectares e se situa no lado setentrional da T.I. Guajajara-Canabrava, sendo quase uma extensão desta. Seu formato não seguiu as linhas daquela terra indígena, isto é, o de um retângulo simples, pois seu limite ocidental ficou recortado em vários ângulos para deixar de fora alguns pequenos povoados e sítios de moradores tradicionais.

Em dezembro de 1979, as duas aldeias da T.I. Lagoa Comprida abrigavam cerca de 197 Tenetehara. Quase vinte anos após esse número alcança a casa dos 470 habitantes.

Terra Indígena Urucu-Juruá

Embora localizada no município de Grajaú, os Tenetehara que habitam essa terra indígena se relacionam mais proximamente, desde início da década de 1960, com as aldeias da T.I. Guajajara-Canabrava e, por conseguinte, com a Ajudância de Barra do Corda (embora atualmente esteja fora de sua jurisdição). A história de sua demarcação está ligada à história da demarcação dessa última terra indígena, bem como do seu apêndice, a T.I. Lagoa Comprida.

Na expansão dos Tenetehara do rio Pindaré para o alto rio Mearim, o rio Grajaú foi um caminho natral. Diversas aldeias tenetehara se estabeleceram nesse rio, desde sua foz até a uns 50 quilômetros a jusante de onde se formou a cidade de Grajaú. Nesse último trecho, por volta do último quartel do século passado, havia um povoamento bastante expressivo, com umas seis aldeias e uma população superior a 600. A diretoria geral dos índios criou uma diretoria parcial, cognominada Chapada, em 1881, para atender e fazer uso da força de trabalho desses índios. Mais abaixo se situava a Colônia Palmeira Torta, composta por umas duas ou três aldeias tenetehara, que entretanto teve pouca expressividade política ou econômica na região. Por ocasião da Rebelião do Alto Alegre, em 1901, havia apenas três aldeias tenetehara naquela altura do rio Grajaú, a mais próxima estando a uns 24 quilômetros de distância da missão dos capuchinhos. Os frades visitaram esses aldeias e levaram crianças para seu internato, o que provocou a participação de seus habitantes naquele violento acontecimento. Após a fuga e o retorno, algumas novas aldeias se formaram mais ou menos na mesma localidade e os homens passaram a trabalhar no serviço das canoas.

Em 1924 a aldeia Oratório foi visitada pelo cientista alemão Emil Snethlage, que a viu bem posicionada no alto de uma barranca do rio Grajaú. Por volta de 1932, Oratório foi mudada dois quilômetros fora da margem do rio por causa de uma epidemia de sarampo (Nembro 1955b: 144). Nos anos seguintes sua população foi caindo, provavelmente por causa do árduo trabalho nas canoas e a altíssima incidência de varíola, sarampo e malária. Por volta de 1936 havia nas proximidades as aldeias de Catingueiro, Curupati e, mais para dentro, na banda esquerda do rio Grajaú, uma grande aldeia chamada Cururu, cujos habitantes eram descendentes daqueles que haviam participado na Rebelião do Alto Alegre. O missionário capuchinho que visitou essa aldeia, Frei Sigismundo de Ombriano, relatou que suas casas formavam um grande círculo (Nembro 1955b: 47). Essa aldeia iria sobreviver até o início da década de 1960, quando seus habitantes se transferiram para a área da futura T.I. Araribóia.

Em 1942 o SPI criou o posto indígena Araribóia na beira do rio Grajaú, um pouco abaixo de onde se situavam as aldeias tenetehara e mais próximo de onde moravam os índios Timbira-Krepumkateye. A idéia era ter um posto para servir ambas as etnias. Porém a região era tão insalubre que dos 190 Timbira e 50 Tenetehara que para lá se mudaram, em 1941, sobraram menos de 60 alguns anos depois. Na década de 1950 os Tenetehara se mudaram de todo, ou para as aldeias da T.I. Araribóia ou para aquelas da T.I. Guajajara-Canabrava, mas os sobreviventes Timbira permaneceram no extinto posto, cada vez mais em piores condições. Em meados da década de 1970 a condição indígena dessa população poderia ter sido abandonada, dado o alto índice de mestiçagem, não fosse a insistência da velha Balbina, que periodicamente ia a Barra do Corda lembrar ao SPI e depois à FUNAI de que eram índios. Afinal, no bojo das demarcações das demais áreas indígenas, a FUNAI tomou as providências para demarcar uma área de cerca de 12.000 hectares, abrangendo as duas margens do rio Grajaú, a qual tomou o nome de Geralda/Toco Preto.

Enquanto isso, a aldeia Oratório foi diminuindo de tamanho, dividindo seus habitantes com a aldeia do Catingueiro, na margem esquerda do rio, que se tornou ponto de parada do serviço de canoas do rio Grajaú, e as novas aldeotas de Urucu e Juruá, estas situadas fora da margem direita do mesmo rio Grajaú. Em 1942, certamente por recomendação do inspetor Malcher, o relatório geral do SPI consigna para os Tenetehara das aldeias Catingueiro, Oratório, Juruá e Urucu uma área não especificada em limites de 121.968 hectares. Tal área, que provavelmente incluiria as terras dos Timbira Krepumkateye, do posto Araribóia, bem que poderia ter sido demarcada; entretanto, nos anos seguintes essa proposta foi abandonada de todo.

A aldeia Oratório se extingüiu algum tempo depois, mas Catingueiro e Curupati, na margem esquerda do rio Grajaú, continuaram a existir até meados da década de 1960, sendo pontos de passagem de Tenetehara que demandavam, da cidade de Grajaú, as aldeias do riacho Zutiua. A partir de 1948 ou pouco antes, o rio Grajaú foi abandonado como meio de transporte entre as cidades de Grajaú e Vitória do Mearim. Assim, perdeu-se um atrativo, perigoso embora, para a permanência dessas aldeias e seus moradores foram procurar novas paragens. Muitos se mudaram para as aldeias que surgiam ou cresciam no riacho Zutiua, outros se passaram para as aldeias Urucu e Juruá e de lá para as aldeias próximas à T.I. Guajajara-Canabrava, como Leite, Lagoa Comprida e Coquinho, que eram atendidas pelo posto indígena Ten. Manuel Rabelo. Em 1959 Xerez, seguindo o plano de demarcar terras próprias para as aldeias Lagoa Comprida e Leite, planejou também demarcar uma pequena área de 5.800 hectares para as aldeias Urucu e Juruá. Deu notícia aos índios, provavelmente fez uma escolha de limites, porém nada foi demarcado nem se tornou oficial. Em novembro de 1964, em ofício ao procurador da República, o inspetor José Fernando da Cruz, possivelmente sob conselho dos funcionários da 3ª Inspetoria que conheciam os planos de Xerez, solicitou a demarcação de uma área de 10 km por 10 km para as aldeias Urucu, Juruá, Lagoa Compria e Leite, sem dar os limites propostos. Tal proposta parecia um tanto estabanada, pois juntava dois conjuntos de aldeias bastante separados um do outro.

Na delimitação da T.I. Guajajara-Canabrava, em 1977, essas quatro aldeias ficaram de fora. Lagoa Comprida e Leite ganharam sua área, e, apesar da insistência para que Urucu e Juruá se transferissem para dentro dessa área, seus habitantes, cerca de 100 naqueles anos, permaneceram onde estavam.

Desse modo criou-se mais um impasse, para cuja resolução não havia outro meio senão procurar demarcar uma área que compreendesse pelo menos uma parte das terras que eram utilizadas pelos Tenetehara dessas aldeias. Para alcançar esse objetivo, haveria que resolver o problema de uma quantidade razoável de lavradores que, por aqueles anos, moravam e viviam de roças dentro da área pretendida. Dois povoados, Pau Ferrado e Sumaúma, somavam umas cento e poucas famílias, algumas lá vivendo há mais de 30 anos. Muitos moradores fizeram finca-pé para não saírem. Contavam com a permanência do povoado São Pedro dos Cacetes dentro da área indígena Guajajara-Canabrava, a alguns 20 quilômetros de distância, para não perderem o direito de permanecer nas terras pretendidas pelos Tenetehara. Porém, os índios não desistiram e fizeram com que a chefia da Ajudância de Barra do Corda pressionasse a FUNAI, em São Luís e em Brasília, para instalar um posto indígena na área, reafirmando assim o direito indígena sobre aquelas terras, criando condições políticas para a saída dos posseiros e, por fim, conseguindo recursos financeiros para indenizá-los.

Entre 1977 e 1980, com o processo de demarcação de outras terras indígenas correndo a todo vapor, tudo isso foi possível. Assim, por um processo administrativo, a T.I. Urucu-Juruá foi delimitada com uma área calculada em cerca de 7.800 hectares. Um pequeno trecho ficou margeando o rio Grajaú, o último ponto de convivência dos Tenetehara com aquele rio. No entanto, a demarcação só foi ser realizada efetivamente em 1983, tendo sido aumentada para uma área de 12.697 hectares, com a retirada dos povoados existentes. Em 1999 os Tenetehara dessa terra indígena somavam cerca de 420 pessoas, por ter agregado moradores dispersos da aldeia Coquinho, e andavam num ritmo de crescimento bastante razoável.

Terra Indígena Bacurizinho

Essa terra indígena, localizada no município de Grajaú, foi situada pelos Tenetehara ainda em meados do século XIX. Numa viagem de levantamento feito pelo engenheiro Saint Amand, em 1856, da qual resultou um mapa manuscrito do Maranhão , consta a existência de duas aldeias, uma delas na beira do rio Mearim, outra mais para dentro na mata entre este rio e seu afluente o riacho Enjeitado. Ambas as aldeias estão localizadas muito a montante da aldeia do Catueté, que ficava a três léguas de Barra do Corda (provavelmente o atual lugar Cateté de Cima). São as aldeias tenetehara mais setentrionais de todas, nas franjas finais das matas secas, abeirando as terras de carrascos e cerrados. Podemos presumir que essas duas aldeias tenham se formado pela expansão dos Tenetehara ao longo do rio Mearim, tendo já assentado aldeias próximas a Barra do Corda. Entretanto, os velhos Tenetehara falam que seus antepassados ali chegaram vindo diretamente do Gurupi, como se tivessem realizado uma migração proposital, atravessando o cerrado grajauense de uma só jornada.

O mapa de Saint Amand apresenta alguns nomes para os riachos que descem no rio Mearim, na altura das referidas aldeias; entretanto, exceto pelo chamado Ribeirão dos Ovos, não coincidem com os nomes encontrados nos mapas atuais. Já o Ribeirão dos Ovos é rabiscado no mapa de Saint Amand como entrando no Mearim um pouco acima de onde está localizada a aldeia ribeirinha tenetehara, coincidindo com os mapas modernos, que dão a foz do referido ribeirão acima da Fazenda Nazaré. Assim, fica confirmada a validade histórica da narrativa tenetehara que se segue sobre sua precedência naquela região.

Os Tenetehara me relataram em 1975 que a aldeia na beira do Mearim daqueles primeiros anos tinha o nome de Coati; a outra localizada mais no centro da mata ficou conhecida como Lagoa do Caboclo.

Algum tempo pelos finais do século XIX, um cearense de nome Salomão Barros montou uma fazenda, que deu o nome de Nazaré, perto da aldeia Coati. Pediu aos Tenetehara para se mudarem um pouco mais abaixo. Os Tenetehara acataram seu pedido e fundaram a aldeia da Gameleira. Lá ficaram durante as confusões da Rebelião do Alto Alegre. Alguns anos depois Salomão, uma vez mais, pediu para eles se deslocarem dali, onde erigiu a Fazenda Santa Maria. Os Tenetehara descerem o rio um pouco mais, situando a aldeia do Coxo; mais tarde fizeram a aldeia do Lajeado. Lá, Salomão Barros, por volta de 1920, erigiu um marco como limite de suas terras. Os Tenetehara uma vez mais se mudaram mais abaixo e fundaram a aldeia Cocalinho, depois Égua, Morro Branco e Canto do Rio, sempre descendo o rio Mearim. Nas décadas de de 1920 a 1930 estavam morando na aldeia do Talhado, de onde passaram para um outro local chamado Cocal ou Cocal Grande, por volta de 1940. Nos anos seguintes, esses três locais, além de Campestre e Mangueira, iriam constituir aldeamentos, às vezes maiores, às vezes simples moradas ou tekohaw, que os funcionários do SPI registrariam ao seu bel entender. Entretanto, os Tenetehara continuaram a fazer usufruto das terras interiores da antiga aldeia do Lajeado, onde iam caçar nas temporadas de verão, respeitando as terras a montante, cedidas por trato de cavalheiros a Salomão Barros.

Ao longo dos anos os Tenetehara dessas subsequentes aldeias ribeirinhas se relacionavam com aqueles que haviam fundado a aldeia Lagoa do Caboclo, no centro da mata, a qual também se mudava com alguma freqüência, até se localizar, por volta do início do século XX, perto de uma lagoa que ficou conhecida como Pedra. Por sua vez, esses índios transacionavam com os índios da aldeia Bananal, na beira do Enjeitado.

Quando o SPI tomou pé da situação dos Tenetehara do município do Grajaú, na década de 1920, deu-se conta de que as aldeias do Bananal, Pedra e Talhado formavam uma comunidade de relacionamento, e, por proximidade, um território comum. Em 1929, Marcelino Miranda tentou argumentar com a direção da 2ª Inspetoria de que esses índios deveriam ser eventualmente transferidos para a reserva decretada em 1923. Mencionou inclusive que havia uma pretensão por parte do fazendeiro Pedro Rodrigues Lopes sobre uma gleba de terras naquela região, mas não mencionou nenhuma alegação por parte de Salomão Barros.

Em 1941, o inspetor Malcher tomou conhecimento da existência dessas aldeias tenetehara e projetou a demarcação de uma área compreendida entre o rio Mearim e o riacho Enjeitado. Embora não constem os limites precisos no relatório geral do SPI para o ano de 1942, tal área foi estimada em 85.282 hectares. Estariam incluídas apenas as aldeias Pedra e Morro do Cocal. A aldeia Bananal, que ficava na beira do Enjeitado, e a aldeia Morro, do capitão Eusébio ou Tatukwerimàn, seria incluída dentro de uma faixa de terra a ser adicionada à T.I. Guajajara-Canabrava, a qual ficaria com o tamanho de 172.593 hectares. Essa proposta não foi levada adiante, mas deixou uma marca na memória dos Tenetehara e nos desenvolvimentos posteriores. Em 1949, aparentemente por consideração de Xerez, as terras para as aldeias dessa região foram consideradas para demarcação em uma área bem menor, de cerca de 10.000 metros por 10.000 metros.

Entretanto os acontecimentos se precipitaram de outra forma, afinal, e ironicamente, bem mais positivo para os Tenetehara. Em 1953, uma descendente de Salomão Barros, Dária Wíncola de Barros, alegou direitos de propriedade sobre as terras das aldeias Talhado, Mangueira e Bacurizinho, as aldeias então existentes na beira do Mearim, e pediu ao SPI para fazer os Tenetehara se retirarem de lá. Xerez, em consulta com Raimundo Vianna, e ouvindo os velhos líderes Tenetehara, decidiu pelo contrário, que os Tenetehara tinham razão. Passados alguns anos, em 1959, as duas partes chegaram a um acordo pelo qual o SPI indenizaria a Dária Wíncola de Barros pelas terras dessas aldeias pela quantia de Cr$ 100.000,00, a serem pagos em duas prestações. O negócio foi registrado em cartório e aos 24 de agosto de 1959, Dária Wíncola de Barros assinou um primeiro recibo no valor de Cr$ 50.000,00 pela venda de três lotes de terras para fazer parte do patrimônio das aldeias Bacurizinho, Mangueira, Pedra, Olho d´Água, Ipu e Cocal Grande. Era claramente uma maneira de pagar tributo a um interesse econômico de conotação política na região que estava sendo contrariado. Não parece ter havido qualquer viés de falcatrua ou corrupção nesse ato, mas também não há recibo sobre o restante.

Do outro lado, na beira do rio Enjeitado, o fazendeiro Silvério dos Reis Rodrigues, talvez descendente ou parente colateral de Pedro Rodrigues Lopes, apresentou-se ao SPI como proprietário da Fazenda Belo Sonho, que constituía uma gleba de terras no Baixão do Papagaio, herança de seu avô, que a havia montado ainda no século passado. De fato, o sobrenome Rodrigues aparece nos documentos da Diretório Geral dos Índios como sendo o chefe da diretoria parcial do Bananal, ainda em 1875. Porém, já antes, desde pelo menos 1856, estava a aldeia Bananal e os índios Tenetehara, a quem a diretoria parcial servia. Assim, os índios tinham como justificar a sua precedência. Raimundo Vianna tentou ajeitar os interesses de Silvério Rodrigues com os dos Tenetehara locais argumentando que estes deviam aceitar a exclusão do Baixão do Papagaio, que ia da Lagoa do Caboclo até a Lagoa Inchu, restringindo as terras imediatas da aldeia Bananal. Porém não houve acordo a esse respeito em 1959, e essas terras não foram demarcadas.

Nos últimos anos do SPI os Tenetehara dessa região ficaram à margem da atuação do órgão, mais preocupado então com a situação interétnica em Barra do Corda e no baixo Pindaré. Na passagem do sertanista João Américo Peret, em abril de 1964, numa mapa do Maranhão sobre o qual esboçou as áreas indígenas a serem demarcadas, consta para essa região duas pequenas glebas de terras em formato retangular, uma na margem direita do rio Mearim, a outra na margem esquerda do riacho Enjeitado, sem estarem conectadas um com a outra. Era um projeto completamente diferente do planejado por Xerez e Raimundo Vianna em 1959, sendo mais parecido com a proposta de Xerez de 1949, o que surpreende. Raimundo Vianna havia saído do serviço alguns anos antes, mas continuara a se relacionar com os Tenetehara, especialmente como patrão. Em outubro de 1964 ele iria amargar um enorme prejuízo, quando o primeiro inspetor nomeado pelo novo regime, José Fernando da Cruz, que ficou conhecido entre os índios e os funcionários do órgão pelo alopramento de seu comportamento, confiscou uma carga de produtos silvestres que Vianna já havia pago adiantado aos índios. Por essas e por outras, Vianna sofria acusações de corrupção semelhantes às que eram jogadas contra outros ex-funcionários do SPI, inclusive seu mentor, Dr. Sebastião Xerez.

Por esse tempo, essa região passou a ser conhecida como Bacurizinho, pela influência dos líderes daquela aldeia. Os Tenetehara estavam começando a experimentar um crescimento em sua população e a consolidar sua convivência mais respeitosa com a sociedade grajauense. Os primeiros fundadores e líderes das duas principais aldeias à beira do rio Mearim, Bacurizinho e Ipu, os dois irmãos Lopes, Raimundinho e Chico, haviam morrido em 1957, mas seus filhos amadureciam e começavam a serem reconhecidos na sociedade regional.

Em abril de 1964, dias da mudança para o regime militar, havia cinco aldeias nesta área indígena. Na rivalidade com Bacurizinho, Ipu saíra na frente, pois lá se instalara uma escola indígena desde 1954. Quem quisesse aprender a ler e escrever tinha que mandar seus filhos para viver com algum parente no Ipu, ou fazê-los caminhar todos os dias três quilômetros de ida e três de volta. Bacurizinho não tinha ainda atrativos assistencialistas, mas ficava mais próxima da velha e decadente aldeia da Pedra, agregara os moradores das aldeias da Mangueira e Talhado, e tinha influência sobre a renovada aldeia do Cocal, liderada pelo visionário José Altino. Com isso ganhava em número e em liderança, com o hábil Pedro Marizê, que substituíra o falecido cacique, o empreendedor Virgolino, e agora com o charmoso sanfoneiro Alderico, filho de Raimundinho Lopes, que despontava como nova liderança, com novo estilo de negociação, menos humilde, desafiando Pedro Marizê e Virgolino. Bem mais distante, na beira do riacho Enjeitado, se encontrava a já centenária aldeia do Bananal, com líderes respeitáveis na velha tradição, mas a quem faltava a nova tarimba política para lidar com os karaiw, os novos tempos de tensão interétnica, e especialmente as novas autoridades indigenistas que estavam aparecendo.

No interregno de cinco anos (1968-73), do início da FUNAI até a fundação de um posto indígena nessa área, os Tenetehara foram se inteirando das mudanças burocráticas que iam acontecendo no novo órgão. A agência do Grajaú foi desativada e os Tenetehara passaram a depender de Dona Maria Dolores Maia, a ex-professora dos postos Gonçalves Dias e Araribóia, e da aldeia Ipu, cuja casa em Grajaú virara um ponto de encontro e até de hospedagem para os mais amigos. A equipe de saúde da 6ª Delegacia Regional passou a fazer excursões de São Luís para as áreas indígenas e aldeias centrais, onde faziam consultas, vacinavam, distribuíam remédios e arrancavam dentes. Os Tenetehara do Bacurizinho eram atendidos nas aldeias Ipu e Bacurizinho. Quando, afinal, chegou a decisão de instalar um posto indígena na área, o local escolhido foi ao lado da aldeia Ipu. Porém a área ganhou o nome de Bacurizinho.

Nesse ano de 1973, a população da área foi contada pelo novo chefe de posto, Ismael Souza, em cerca de 650 pessoas, nas aldeias Ipu, Bacurizinho, Cocal, Talhado e Bananal. A aldeia da Pedra existia por tradição, mas não passava de um tekohaw onde algumas famílias mantinham velhas roças, porém com casas na aldeia do Bacurizinho. Morando permanentemente na aldeia da Pedra, e atendida por parentes que tinham casa no Bacurizinho, estava a velha Romana, então com mais de oitenta anos de idade, pois fora mocinha durante a Rebelião do Alto Alegre, e que se recusava a sair para qualquer outra aldeia, mesmo por questões de saúde. Em 1974 Ismael deixou a chefia do posto, sendo assumida pelo atendente de enfermagem Raimundo Mourão, que se firmou no cargo por credenciamento em abril de 1975, após a conclusão de um curso de indigenismo em Brasília, como haveria de fazer a FUNAI pelos anos seguintes. Mourão iria chefiar o P.I. Bacurizinho pelo período em que se desencadeou e se concluiu o processo de demarcação dessa terra indígena. Sua atuação, embora intencionada a ajudar na realização desse objetivo, não foi marcante, pois se enfraquecia com as pressões de fora. Por outro lado, uma pressão bem maior e contundente vinha dos próprios Tenetehara, que freqüentemente duvidavam da eficácia de seu chefe de posto e suspeitavam de sua honestidade, o que iria colocá-lo em alguns momentos em posição de insegurança no trabalho e com a família. Por diversas vezes líderes tenetehara ameaçaram expulsar Mourão da chefia, mas ele matreiramente aprendeu a usar de meios para contornar as situações difíceis com os recursos do posto ou próprios. O radicalismo dos Tenetehara pela demarcação de suas terras não permitiu qualquer manobra de conciliação com invasores ou pretendentes fazendeiros, e barrou algumas tentativas que surgiram da 6ª Delegacia, baseadas nos termos negociados por Xerez e Viana, em 1959.

O auge da tensão interétnica da demarcação dessas terras se deu entre 1975 e 1977, em virtude de dois atritos com interesses locais. Um foi precisamente com a mesma senhora da família Barros e seu marido nipo-brasileiro Akashi, que haviam sido ressarcidos em 1959. Eles agora alegavam que não haviam recebido uma parte do dinheiro acordado pelo SPI naquela ocasião. Só que essa negociação estava registrada em cartório de Grajaú. Mesmo assim, Dona Dária Wíncola de Barros insistiu e procurou recursos jurídicos e políticos para embargar a demarcação, inutilmente. O outro atrito se deu com o velho e simples morador da beira do riacho Enjeitado, Silvério Rodrigues, que trazia à tona a negociação feita com Vianna pela qual suas terras, situadas no Baixão do Papagaio, haviam sido respeitadas e não incorporadas à área indígena. Os Tenetehara da aldeia Bananal, perto da qual ficava a Fazenda Belo Sonho, não concordavam com esses termos, retorquindo que lá estavam muito antes do avô de Silvério ter chegado e situado sua fazenda, e que não haviam concordado com as propostas feitas por Vianna. A pressão dos Tenetehara foi de tal monta que conseguiram o que queriam e a T.I. Bacurizinho foi demarcada em 1978 e homologada em 1980, com 82.432 hectares, uma área um tanto maior do que aquela estimada no croquis traçado em 1959, e próxima daquela proposta em 1942.

O sucesso da demarcação da T.I. Bacurizinho empolgou os Tenetehara. A nova maneira de lidar com a FUNAI e com os karaiw em geral parecia que dera certo. A idéia era pressionar o máximo possível e de todas as maneiras, sem nenhuma forma de diplomacia. A primeira vantagem que ganharam foi a criação de mais um posto indígena na área, localizado na aldeia Bananal. Por esse tempo a FUNAI estava com falta de indigenistas para chefiar os muitos postos que estavam sendo criado pelo país a fora, e assim foram sendo aproveitados aqueles funcionários que tinham traquejo em lidar com os índios, tais como, atendentes de enfermagem, técnicos agrícolas e até motoristas das viaturas do órgão. Assim, o primeiro chefe do P.I. Bananal foi o técnico agrícola Válber Ribeiro, um rapaz esperto que havia ganho esse emprego em razão do casamento com uma moça tenetehara e das boas relações que mantinha com os jovens líderes da área. Alguns meses depois, o Tenetehara João Madrugada, que estava no Bananal como monitor bilingüe, não viu porque ele mesmo não viesse a ser o chefe do posto e forçou a saída de Válber. Mas ainda não havia chegado a sua hora. Com efeito, o primeiro Tenetehara a vir a ser chefe de posto foi mesmo Alderico Lopes, em 1982. O chefe de posto que substituíra Raimundo Mourão não dava conta da pressão cada vez maior dos Tenetehara e desistira. Depois de alguns meses em que o posto ficara vazio ou preenchido temporariamente por atendentes de enfermagem, Alderico foi nomeado substituto e foi ficando até ser efetivado, apesar de nunca ter feito curso de indigenismo, o que era requisito ao cargo.

O P. I. Bacurizinho está nas mãos de Alderico desde então. Nos primeiros meses de sua administração ele ainda morou na sede, a alguns metros da aldeia Ipu, a três quilômetros de sua casa na aldeia Bacurizinho. Mas logo resolveu ficar em casa até que uma nova sede do P.I. Bacurizinho viesse a ser construída na sua aldeia. Em 1987, foi criado o P.I. Ipu e para ele foi nomeado o Tenetehara José Lopes, primo carnal, ou paralelo, de Alderico, a quem chama de irmão, por ser filho do falecido Chico Lopes, irmão de Raimundinho Lopes, pai de Alderico. A rivalidade desses primeiros irmãos continuava na rivalidade dos primos.

Os dois postos indígenas servem praticamente às suas respectivas aldeias e às aldeias menores que foram se formando tanto pelo vertiginoso aumento populacional desde a década de 1970, quanto em razão das disputas internas por poder e influência engendradas pelos jovens com propensão a liderança. Tal é o caso, por exemplo, de Gentil, morador da aldeia Ipu, Tenetehara extremamente trabalhador, que fora aprendiz de pajé quando da minha primeira estada na área, em 1975. Sem alarde, Gentil foi se firmando como líder, não em oposição, mas diagonalmente às lideranças de José Lopes e seu irmão Chico Lino, que dominavam o Ipu. Em 1983 Gentil já tinha força bastante para se mudar para o interior da área, no lugar São José, e levar consigo uma centena de pessoas da aldeia Ipu. Durante o período de vacas gordas da FUNAI, Gentil conseguiu recursos para fazer uma casa de farinha, comprar ferramentas, utensílios e bois de carga e assim ampliar a produção agrícola das roças da nova aldeia. Em alguns anos ele tentou e obteve empréstimos agrícolas do Banco do Brasil, com intenção de financiar suas roças e de mais alguns Tenetehara de sua aldeia. Em 1995, quando o governo estadual do Maranhão obteve financiamento do Banco Mundial, como parte de um programa de auxílio a pequenos agricultores, Gentil estava no palanque de inauguração do programa, em Grajaú, como um dos seus agraciados. Nesse sentido Gentil é uma das poucas exceções entre líderes Tenetehara recentes por ter crescido em liderança sem ter emprego público, isto é, sem uma fonte permanente e estável de renda, ao contrário, dependendo unicamente de sua iniciativa agrícola.

Os Tenetehara da T.I. Bacurizinho somam hoje mais de 2.300 pessoas, com um índice de crescimento demográfico bastante elevado. Não há problemas de invasores, nem possibilidades aparentes de invasão, pois a fama agressiva dos Tenetehara é bastante difundida na região centro-sul do Maranhão. Não havendo mais madeira, nem outros produtos da floresta, nem minérios, os Tenetehara tocam sua vida pela agricultura, procurando produzir algum excedente para vender. Alguns mais empreendedores mantêm com dificuldade uma pequena pecuária.

Terra Indígena Morro Branco

O Morro Branco é uma gleba de 49 hectares de terra situado nos arrabaldes da cidade de Grajaú. Fica próximo à entrada sudeste da cidade, a 200 ou 300 metros da estrada que vem de Barra do Corda. Constitui um morrote que pouco se destaca na paisagem local, mas nele brota uma mina d’água permanente e até pouco tempo havia lenha bastante para fazer fogo. Desde o início do século XX os Tenetehara que vinham das aldeias da Gameleira, depois Cocalinho, Talhado e da aldeia da Pedra para trabalhar no serviço de canoas costumavam se arranchar com suas famílias nesse morro. As mulheres e filhos ficavam esperando a volta dos maridos, que às vezes demoravam até quatro semanas descendo e subindo o rio Grajaú até Vitória do Mearim. O salário era baixíssimo, não mais de 30$000 réis por jornada, o que mal dava para comprar uma muda de roupa para si e para a mulher, mas a compulsão social para se arriscar nesse trabalho extremamente árduo era grande. Lembremos aqui que nos séculos XVII e XVIII o salário de um índio livre por dois meses de trabalho era de duas varas de pano, valor não muito inferior ao do serviço de canoas entre 1900 e 1950. Deixando suas famílias para se virarem como pudessem no Morro Branco, os homens tenetehara corriam o sério risco de verem suas jovens esposas sendo cortejadas pelos rapazes da cidade, e alguns casos resultaram em gravidezes. Com efeito, em 1975 havia na aldeia Bacurizinho duas pessoas nascidas desses relacionamentos, por quem os cujos pais biológicos pouco haviam se importado, embora tivessem sido bem criadas pelos pais sociais.

Terminada a correria de canoas, diminuiu a permanência de famílias tenetehara no Morro Branco, mas nunca parou de ter gente pernoitando ou passando alguns dias nos ranchos improvisados. Na década de 1970, com o surgimento da demanda por artesanato indígena, e também por maconha, algumas famílias passaram a ficar por lá durante os meses de mais movimento de transeúntes, e construíram casas mais bem feitas e permanentes. Pelo fim da década já havia mais de dez famílias praticamente vivendo no Morro Branco. Os filhos já haviam cursado a escola indígena por três, quatro, cinco anos, e os pais queriam que eles continuassem os estudos. Daí para convencer a FUNAI de que esta área deveria ser considerada indígena foi um passo até natural. O fato de ser uma gleba urbana lhe conferia uma característica inusitada, mas inusitada também era toda a pressão que os Tenetehara faziam, e o certo é que eles haviam adquirido um legítimo direito de posse.

A negociação para a demarcação dessa área foi feita com a prefeitura da cidade, que não impôs dificuldades maiores para aceitar a argumentação de direito de posse sobre uma terra para a qual não havia nenhuma outra alegação clara e legítima de direito de propriedade. Ao contrário da cidade de Barra do Corda, em Grajaú o desprezo contra os Tenetehara não se dá tão à flor da pele, nem vem carregado do ódio rancoroso herdado da Rebelião do Alto Alegre.

Na década de 1980, o Morro Branco cresceu em população e chegou a ser uma verdadeira aldeia tenetehara com cerca de 140 pessoas. A própria 6ª Delegacia Regional da FUNAI fora convencida a ajudar os estudantes tenetehara com bolsas de estudos, o que contribuía para compensar o sacrifício dos pais de terem que manter casa distante de suas roças. Iam e vinham do Bacurizinho para o Morro Branco, traziam os produtos da roça e procuravam ganhar um extra vendendo um pouco de artesanato e trabalhando no facão e na enxada para quem precisasse de serviço braçal. As mulheres não se submetiam, nem eram requisitadas para o serviço doméstico na cidade. Uns poucos transacionavam maconha em pequenas quantidades com compradores amadores, correndo o risco de serem pegos pela polícia federal. Aliás, cabe dizer aqui que pelo menos dois deles, Celestino Guajajara e Djalma Marizê, haviam sido presos e interrogados violentamente por agentes federais em 1977. Nessa ocasião, a Ajudância de Barra do Corda, através de seu chefe, José Porfírio de Carvalho, entrara com um protesto oficial veemente, incluindo um pedido de compensação pelos maus tratos causados a Celestino (Henman 1979). O tráfego de maconha iria se intensificar na década de 1990, tornando-se uma das principais fontes de renda dos Tenetehara das diversas terras indígenas da região Grajaú-Barra do Corda. Já a Polícia Federal, sempre reprimindo com violência inaceitável para os Tenetehara, haveria de sofrer uma vingança dos Tenetehara, em 1993, quando estes prenderam e amarraram dois policiais federais que haviam entrado brutalmente na aldeia Coquinho a procura de traficantes indígenas.

Em 1999 a aldeia da T.I. Morro Branco havia diminuído para cerca de 80 Tenetehara. Tem uma pequena escola para os meninos mais novos, dirigida por um monitor bilingüe, enquanto os mais adiantados estudam em escolas regulares na própria cidade de Grajaú. Quase todos os moradores são originários de aldeias da T.I. Bacurizinho, embora o Morro Branco esteja aberta para qualquer Tenetehara. Sua continuidade como terra indígena dependerá da disposição dos Tenetehara para morar numa cidade e arriscar um meio de vida pelo trabalho braçal ou competir com os civilizados por algum tipo de emprego urbano. Os Tenetehara que têm remuneração melhor, como chefes de posto ou monitores bilingües, em geral possuem casas na cidade e vivem um pouco à parte de seus patrícios, porém sem perder o relacionamento social e econômico, já que eles mesmos mantêm casas na T.I. Bacurizinho

Terra Indígena Araribóia

Na passagem do inspetor Malcher pela Estrada do Sertão, margeando o riacho Zutiua, em fevereiro-março de 1941, ele notou a grande extensão de terras entre os rios Pindaré e Grajaú, na altura do médio Zutiua para cima (isto é, para o sul) onde havia um vazio de moradores civilizados e a presença soberana de índios Tenetehara. Determinou a criação de um posto na aldeia Tauari Queimado, mas seu ajudante José Olímpio acabou estabelecendo o novo posto Araribóia malfadadamente na beira do rio Grajaú. Em 1949 esse posto foi transferido para a aldeia Funil, que ficava não muito longe do ponto em que os riachos Zutiua e Buriticupu nascem, partindo em direções opostas um do outro, depois descendo paralelamente até desembocarem no rio Pindaré. Malcher deve ter entretido a idéia de, em algum momento, consignar como área indígena toda a extensão entre os rios Pindaré e Grajaú, ou ao menos entre o Zutiua e o Pindaré, como de fato surgiu a primeira proposta de demarcação dessas terras transcrita no relatório anual do SPI de 1942.

Entretanto, só com a instalação do novo posto Araribóia, sob o comando do Dr. Xerez, é que as primeiras providências iriam ser tomadas. No mesmo ofício de 1949 em que solicita a designação de agrimensores ao governador do estado do Maranhão para ajudar na demarcação de terras indígenas, Xerez traça os limites da área indígena do posto Araribóia, englobando terras para os Tenetehara bem como para os Krikati e Gaviões. Os limites são vagos: Pela frente com a linha telegráfica, isto é, mais ou menos ao longo do riacho Zutiua; pelos fundos com a margem direita do rio Pindaré; pelo lado de baixo, isto é, pelo norte, com terras devolutas; pelo lado de cima, isto é, ao sul, com a margem direita do Riachão. Toda essa área era estimada em um quadrilátero de 30 km de frente por igual extensão de fundo, medida muitíssimamente subestimada. É possível que Xerez, em sua comunicação com as autoridades, tivesse como estratégia minimizar os tamanhos das áreas que queria que o governo estadual acatasse como indígenas. De qualquer modo, se essa área fosse também para os Krikati, estes teriam que ser atraídos das terras onde viviam, nos riachos formadores do rio Pindaré, um processo que jamais foi tentado nos anos seguintes.

Em 1959, o Dr. Xerez, Raimundo Vianna e o chefe do posto Araribóia, Benevenuto Riedel, conseguiram delimitar no papel uma área de cerca de 430.000 hectares englobando todas as aldeias tenetehara da região do posto Araribóia. A área foi demarcada in loco com marcos fincados em pontos estratégicos, após acordos com antigos sitiantes das vizinhanças, especialmente aqueles que viviam próximo a algumas aldeias à beira do Zutiua, tais como Presídio e Vargem Limpa, e com a participação de muitos índios Tenetehara. O novo limite oeste era o riacho Buriticupu até sua desembocadura do rio Pindaré. Todavia, apesar da facilidade com que essa demarcação foi realizada, com poucas e contornáveis contestações, a área terminou não sendo oficializada nos anos seguintes. Só com a FUNAI, em 1978, é que seria finalmente demarcada, após uma árdua disputa com um exagerado número de mais de 2.000 novos invasores e alguns poucos antigos sitiantes.

Moldada em um quadrilátero, cujos lados sul, leste e oeste são delineados pelos cursos dos rios Zutiua e Buriticupu, e a divisa norte por uma linha seca que liga os dois rios, a partir da desembocadura do riacho Serozal no riacho Buriticupu, a Terra Indígena Araribóia constitui 413.288 hectares da orla oriental da floresta amazônica, com umas pequenas manchas do cerrado grajaúense, sem dúvida nenhuma um patrimônio fabuloso dos Tenetehara.

Em 1970, sendo chefe do P.I. Araribóia (Funil) o sertanista italo-brasileiro Fiorello Parise, iniciou-se o processo de reconhecimento daqueles limites pela FUNAI. A população tenetehara estava em crescimento lento desde a década de 1950 e chegava a 1.400 pessoas em quatorze aldeias. Já então começavam a aparecer imigrantes em busca de terras livres, especialmente do lado oriental da área projetada. Na quina nordeste, na beira da velha Estrada do Sertão, porém considerada fora dos limites da área, onde existira a aldeia Tauari Queimado até fins da década de 1940, agora se formava o povoado Arame, nome emprestado de uma cerca de arame farpado, item então raro na região, que seu primeiro morador não indígena, um missionário protestante, que lá vivia em 1941, quando da passagem do inspetor Malcher, fizera ao redor de sua casa. Os lavradores sem terra demandavam a região seguindo a Estrada do Sertão tanto do norte para o sul, como do sul para o norte. Ao norte, haviam fundado o povoado, logo depois cidade de Santa Luzia, em terras da velha aldeia tenetehara do Anajá. Agora essa estrada se alargava para se tornar uma estrada de rodagem ligando Grajaú a Santa Luzia e daí a Santa Inês. A partir de 1973 a construção do trecho entre Arame e Grajaú ficara a cargo da empreiteira cearense EIT que, aproveitando as subvenções e subsídios da época, investia também em terras da margem oriental da área indígena.

Em 1974 já havia tanta gente com disposição a conseguir um pedaço de terra que parte delas se instalou de vez na margem ocidental da estrada, dentro da área, pagando para ver se alguém os iria retirar. Um povoado, com o nome de Marajá, onde houvera uma aldeia tenetehara nos anos 1940, cresceu rapidamente e logo contava com uma população avaliada, exageradamente, em 2.000 pessoas. A tensão foi aumentando no ano de 1975 . Em maio, o chefe do P.I. Angico Torto, criado um ano antes para enfrentar essas novas dificuldades, Mário Daltrozo, deu o prazo até setembro para os posseiros invasores se retirarem. Vencido o tempo, ao chegar num barraco de um deles com alguns acompanhantes Tenetehara para cobrar a sua saída, foi recebido com um tiro. Os Tenetehara reagiram e mataram o atacante a pauladas e feriram mais dois. Daltrozo foi levada às pressas para São Luís, com um pulmão perfurado. Depois de sarado, por motivo de segurança, ele foi afastado do posto e transferido para outra região do país.

Com esse incidente e um herói à mão, ficou bem mais fácil para a FUNAI obter o apoio da polícia federal e forçar a saída dos invasores. O substituto de Daltrozo, Luís Jatobá, encontrou meio caminho andado, e em 1976 os posseiros do lado do rio Zutiua foram retirados. A demarcação foi realizada em etapas, devido ao tamanho do perímetro, e por causa de algumas dificuldades com velhos moradores, em particular aqueles que viviam nas proximidades da aldeia Presídio, que não queriam deixar suas posses de longa data, bem como alguns novos invasores com capital já aplicado. Particularmente difícil foi a expulsão de um fazendeiro no lado noroeste da área. O chefe do P.I. Canudal, criado dois anos antes para apoiar os Tenetehara que tinham migrado para aquela sub-área, Jorge Muniz, mostrou destemor e liderança, junto com diversos Tenetehara, para enfrentar essa resistência. Quanto aos antigos compadres civilizados que perderam seus direitos a terras ocupadas de longa data, os Tenetehara não sentiram mais do que uma pequena e passageira compaixão. Prejudicados também se sentiram Raimundo Vianna e seu cunhado Tenetehara, Pedro Marizê, que alegavam que umas áreas de terras próximas à aldeia Borges, que haviam ficado dentro da terra indígena na demarcação final, mas fora na primeira demarcação, eram suas propriedades particulares, não dos Tenetehara.

Incidentalmente, na esteira da demarcação da T.I. Araribóia, foi demarcada a terra indígena dos índios Gaviões, situada alguns quilômetros ao sul, com 41.000 hectares de cerrado e floresta de galeria. Ambas as terras indígenas se situam majoritariamente no município do Amarante, embora partes do Araribóia estejam nos municípios de Grajaú e do atual Arame. Já o território dos Krikati ficou a mercê de muita disputa e só em 1997 é que foi dada uma solução de demarcação, ficando com uma área de cerca de 146.000 hectares, parte da qual está tomada por posseiros e fazendeiros.

Nos anos seguintes, não havia quem não sentisse satisfação em ver tamanho território demarcado, uma floresta pujante e terras boas para agricultura, caça e coleta de produtos silvestres, tais como castanha de cumaru, cipós e resinas, e especialmente a folha de jaborandi, cuja coleta era incentivada por representantes do laboratório Merck, que tinha uma agência de compra em Teresina, Piauí. Parecia que desta área só viriam benefícios para os Tenetehara que mantivessem o padrão tradicional de cultivo da terra com uma economia de troca de produtos silvestres. Entre os rios Zutiua e Buriticupu ficava uma mata imensa que podia ser explorada racionalmente por muitos anos, sem debastá-la, nem gastá-la.

Em 1985 a população do Araribóia chegava a 3.000 habitantes, um crescimento acima da média - já bastante alta - do crescimento tenetehara. Quando os recursos do convênio de reparação da CVRD/FUNAI foram estendidos para essa área, a 6ª Delegacia Regional, sob a chefia do Tenetehara Pedro Marizê e a liderança efetiva do sertanista José Porfirio Carvalho, avaliou a situação das aldeias e determinou em quais se podia investir na criação de gado, e com quem se podia emprestar a fundo perdido para a plantação de roças de arroz. Os Tenetehara se entusiasmaram com esses recursos e planejaram derrubar áreas cada vez maiores para roças e para pasto. Poucos tiveram que investir tudo nas empreitadas e gastaram muito em bens de consumo. Menos ainda tiveram a oportunidade de auferir lucros com as colheitas. Os mais espertos passaram a contratar mão-de-obra externa para as grandes derrubadas de mata, acertando o aproveitamento da madeira de lei, cujos troncos deviam ser retirados antes da queimada.

Quando o convênio parou de enviar recursos, em 1989, já havia um meio de continuar a se ganhar dinheiro com os produtos da terra indígena: a venda de madeira de lei. Disso se aproveitariam principalmente os Tenetehara que tinham convivência com comerciantes das cidades do Amarante e Grajaú e sabiam negociar. À frente estavam Antenor Bone e Belita Madrugada, ambos oriundos de outras áreas indígenas mas que viviam no Araribóia. Entre 1990 e 1995, cerca de trinta madeireiras se instalaram em Amarante somente para cortar e transportar a madeira da T.I. Araribóia. No começo, entraram na área pela estrada que liga a cidade ao P.I. Funil, e daí penetraram pelo interior da mata até bem fundo. Esgotado esse veio, partiram pelo lado da estrada que vai até o P.I. Canudal, cuja área também foi devastada. Por fim, passaram para o lado leste e nordeste, pela estrada Grajaú-Arame, penetrando pelos postos indígenas Angico Torto e Presídio e por um posto de vigilância criado precisamente para coibir a entrada de pessoas do Arame. Ao final de quatro a cinco anos, grande parte da floresta de madeira de lei havia sido abatida.

Os Tenetehara que souberam negociar suas porcentagens de ganho passaram a viver uma vida de abastança, compraram casas e carros em Amarante e Imperatriz, esbanjaram uma riqueza nunca dantes vista na região, especialmente entre índios Tenetehara. Porém, a madeira de lei foi se esgotando, as madeireiras maiores mudaram-se para outras regiões, só ficando as menores, e o dinheiro encurtou para todos. Hoje em dia poucos Tenetehara mantêm algo do nível de consumo que tinham alguns anos atrás. Pouco restou de poupança, a não ser uma experiência que certamente não jogará luz prudente no futuro. A volta a um padrão modesto de existência é o que salvará os Tenetehara de um descompasso com sua condição étnica que poderia levá-los inclusive à perda de controle desse belo território.

Em 1999 os Tenetehara da T.I. Araribóia somavam mais de 4.500 pessoas.

Terra Indígena Pindaré

Na primeira consideração do SPI, através do relatório de Luiz Riedel, de 1914, sobre os Tenetehara que viviam no rio Pindaré e na Estrada do Sertão, não há nenhuma menção sobre terras. Eram extensíssimas, os índios estavam espalhados e os povoamentos de civilizados raros, em convivência pacífica com os índios. O mesmo se dá no relatório geral do SPI de 1918 que fornece o primeiro levantamento dos índios nos municípios maranhenses. Aqui se explicita a não preocupação com a demarcação de terras nessa região, em contraste com o objetivo de garantir terras para os índios da região de Grajaú-Barra do Corda. Só com a vinda de Malcher ao posto Gonçalves Dias, em fevereiro de 1941, acompanhado pelo ímpeto de demarcação de terras indígenas no Maranhão, é que surge o primeiro esboço de delimitação de uma área indígena na região.

Com efeito, o relatório geral da 3ª Inspetoria de 1942, além das áreas já mencionadas anteriormente, propõe a criação de uma área para englobar as terras de usufruto das aldeias Januária (no posto Gonçalves Dias), Ilhinha, Pinoatiua, Requahau Piarru, Grota, Marcelino, Caruzinho e Joaquim Grande, todas na beira do rio Pindaré, bem como Contra Erva, Lagoa Comprida, Pau Santo, Jacaré, Zutiua, Limão, Cigana e Tauari Queimado, na Estrada do Sertão abeirando o riacho Zutiua. Tal área foi calculada em 353.889 hectares. É difícil visualizar o formato dessa área, já que o riacho Zutiua e a Estrada do Sertão se desviam da margem do rio Pindaré a partir do lago Tarupau, ou da aldeia Lagoa Comprida. Para abarcar esses dois rumos, especialmente ambas as margens do rio Pindaré, o tamanho dessa área teria que ser muito maior.

Em 1949, o Dr. Xerez, seguindo as recomendações de Malcher, vislumbrou criar duas áreas para os Tenetehara do vale do Pindaré. Uma, que Xerez diz já ter sido delimitada em mapa pelo agrimensor Jair Guimarães em 1940 (provavelmente a que consta no relatório de 1942), tinha como frente a margem esquerda do rio Pindaré até seu afluente o rio Caru, que seria o limite sul pela sua margem esquerda até os contrafortes da Serra de Piracambu (Tiracambu); o limite norte (justante) seria o igarapé Caraaçu que desce no rio Pindaré um pouco abaixo do posto Gonçalves Dias; e o limite oeste, ou de fundos, seria uma linha que vinha dos contrafortes da Serra de Tiracambu. Em 26 de julho de 1958, em ofício ao diretor do Departamento de Terras, Geografia e Colonização do Maranhão, Xerez solicitou que fosse inscrita a ocupação dessas terras pelos índios Tenetehara, aparentemente um primeiro passo para a sua demarcação oficial. Entretanto, nada foi feito para tornar essa proposta uma realidade, mesmo porque em julho de 1961 o presidente Jânio Quadros assinou um decreto criando a Reserva Florestal do Gurupi, a qual consistia em um polígono de aproximadamente 1.600.000 hectares situado entre os rios Gurupi e Pindaré, abrangendo inclusive as terras propostas por Xerez, e anteriormente por Malcher.

A outra área seria formada por um primeiro limite que sairia da embocadura do riacho Zutiua, margeando pelo lado esquerdo até uma certa altura, englobando as aldeias da Estrada do Sertão. Pela metade da década de 1950 essa segunda proposta estava descartada, já que a entrada maciça de imigrantes a inviabilizara e as aldeias tenetehara foram se acabando, até sua última, Anajá, que sucumbiu em fins de 1964.

Nos anos finais da década de 1950, vendo a impossibilidade do SPI demarcar toda a extensão de terras da margem esquerda do rio Pindaré, entre o rio Caru e o Igarapé da Água Preta, e certamente esperando que providências maiores seriam tomadas pelo governo federal, bem como as terras da margem direita do mesmo rio, ao longo do riacho Zutiua, o Dr. Xerez se concentrou na demarcação das terras imediatamente ao redor do posto Gonçalves Dias, no então município de Pindaré-mirim. As terras perdidas estavam sendo tomadas por imigrantes nordestinos que abriam roças e fundavam povoados. As aldeias que ainda permaneciam por aí - Ilhinha, Lagoa Comprida, Contra Erva e Anajá - foram abandonadas e seus habitantes convidados a virem fazer morada perto do posto. Xerez ainda tentou que o governo do estado o ajudasse, mas tudo parecia ir contra os Tenetehara da região. A única possibilidade era a delimitação das terras ao redor do posto indígena, o que dava uma área de cerca de 16.000 hectares. Mesmo assim com muito custo, pois a grande leva de imigrantes pobres lavradores sem terra que se dirigiam para o alto Pindaré também atravessaram o rio Pindaré na altura da cidade de Santa Inês e já estavam derrubando a mata, fazendo roças e abrindo pastos para seu gado.

Os arquivos do posto Gonçalves Dias demonstram o quanto havia de nervosismo na região. Entre 1960 e 1968 não se passa um mês sem que haja algum telegrama à 3ª Inspetoria comunicando algum distúrbio causado por um posseiro, um madeireiro ou por algum índio revoltado com a tomada de suas terras e o roubo de madeira. Em 1962, o inspetor Xerez chegou a ressarcir um posseiro mais antigo reclamante para se retirar das terras dos índios. Nessa ocasião era chefe do posto o sertanista Júlio Alves Tavares, cujo relatório arrola a presença de 240 Tenetehara e 28 Timbira Kre-jê na área Pindaré. Em abril de 1964, conforme se pode apreender do relatório do indigenista José Américo Peret, que passava pela área para avaliar a situação das terras indígenas do Maranhão, a confusão estava instalada nessa região, não só pela drástica mudança de governo, como também pelo burburinho de atividades causado pela construção da estrada de rodagem que iria ligar São Luís a Belém do Pará. Em seu relatório, Peret menciona ainda que havia um posseiro que se recusava com toda a veemência a aceitar os limites da área indígena.

Nos anos seguintes, a confusão só iria aumentar, deixando os índios extremamente inseguros de seu futuro. Sua população iria crescer muito lentamente, pois em 1975 chegava a apenas 270 Tenetehara e 40 Timbira, sendo esta última composta de jovens mestiços. Enquanto isso a população brasileira se multiplicava em toda a região do baixo Pindaré, e várias partes da área indígena foram sendo tomadas por invasores. Muitos posseiros usavam da terra indígena sob o beneplácito dos incumbentes chefes de posto, outros sob o patrocínio de alguns Tenetehara. Em ambos os casos, o modo de fixação se dava pelo arrendamento de lotes de terra, seja para a agricultura, seja para a coleta de coco babaçu. Situada a apenas seis quilômetros da crescente cidade de Santa Inês, a área indígena fora cortada ao meio pela BR-316, cuja construção levara quase dez anos para ser concluída. A estrada abriu uma veia de passagem para os lados do Pará, que atrairia gentes de todo o Maranhão e estados do nordeste, lavradores pobres que foram se instalando por conta própria ou assentados por um projeto de colonização da SUDENE, o qual atraía igualmente pequenos comerciantes e profissionais de classe média que foram se instalando e conquistando os melhores nichos da sociedade local. Um povoado brotou na beira da estrada a apenas três quilômetros dos limites da área, e logo virou cidade e sede de município, com o nome de Bom Jardim. Ela abrangeria as terras da margem esquerda do Pindaré, que anteriormente pertenciam a Pindaré-mirim. Assim, a futura T.I. Pindaré ficou integrada a este novo município, sofrendo sua pressão política e econômica, bem como a da pujante Santa Inês.

No início dos anos 1970, a FUNAI considerava essa área quase impossível de ser demarcada e mantida, tão próxima de duas cidades, na beira de uma estrada federal, e invadida por mais de 200 famílias de posseiros. O delegado e coronel da polícia Armando Perfetti, junto com seu auxiliar o sertanista João Fernandes Moreira, tentaram por diversas vezes convencer os índios a se mudar para o alto Pindaré ou para o Araribóia. Eles persistiram e insistiram. Em 1975, a tensão alcançou níveis de pré-confrontamento, sobretudo porque os Tenetehara do Pindaré foram emulados pelos seus compatriotas da região de Barra do Corda ao mesmo propósito de defender suas terras. Embora alguns Tenetehara mais velhos auferissem alguma vantagem com a renda da quebra de coco babaçu e da colheita de roças de arroz e mandioca, uma nova geração estava disposta ao confronto armado para retirar os invasores. Os posseiros se apoiavam nos novos políticos de Bom Jardim, uma terra de aventureiros onde alguns faziam fortuna rapidamente montando fazendas e agregando terras já desmatadas. Afinal, a FUNAI não teve escolha e tomou a decisão de forçar a saída dos posseiros, ameaçando-os com a presença da polícia federal. Em fins de 1975, o chefe de posto, Domingos Faria, junto com um turma de jovens Tenetehara, arrolaram e expulsaram 117 famílias localizadas na parte norte da área. No ano seguinte foram retiradas mais 70 e poucas famílias da parte sul, ficando somente as quase cem casas localizadas na beira da estrada, num povoado chamado Tirirical, já se aproximando de Bom Jardim. Na negociação final, o povoado e seus arredores ficaram de fora da terra indígena. Ainda hoje os Tenetehara comentam que isto se deu por um acordo entre o delegado da FUNAI da época e o prefeito, que tinha uma gleba de terras naqueles lados. Os Tenetehara se apossaram das áreas onde havia roças, pomares e pasto para gado, bem como dos pontos estratégicos onde houvera concentração de invasores. Fundaram aldeotas e moradas.

Nos anos seguintes, na onda de sua recém descoberta força política, os Tenetehara passaram a reivindicar maior participação na condução do P.I. Pindaré. Expulsaram o velho vaqueiro do tempo do SPI e tomaram de conta do rebanho de mais de 200 cabeças de gado, o qual foi distribuído entre todas as famílias tenetehara. Aos poucos, o gado minguou e apenas alguns iriam manter umas poucas cabeças nos anos seguintes. Entre 1977 e 1985, os Tenetehara do Pindaré iriam contar com a presença de um excepcional chefe de posto, José Benvindo, que estabeleceu no posto uma cantina para comprar produtos tenetehara, principalmente coco babaçu, e vender bens de consumo a preços de custo. A FUNAI apoiou essa atividade por alguns anos, e, após 1983, a cantina iria se expandir pois contava com mais recursos de investimento a fundo perdido vindos do Convênio CVRD/FUNAI. Porém, quando essa fonte secou, em 1988, a cantina começou a cambalear, os Tenetehara se aborreceram com a falta de mantimentos baratos e empréstimos irressarcíveis, e pressionaram pela saída de Benvindo, que, esperando se tornar delegado da 6ª Delegacia Regional, desistiu do cargo e foi para São Luís. Desde então o P.I. Pindaré perdeu a força de presença que tivera e passou a uma fase de indefinição, apenas preenchida pela liderança de alguns Tenetehara.

Desde 1978, a presença exógena mais forte entre os Tenetehara do Pindaré é a do Padre Carlo Ubbiali, do Cimi - Conselho Indigenista Missionário - órgão do Conselho de Bispos do Brasil, que vive em Bom Jardim. O Padre Ubbiali tem se dedicado ao trabalho de evangelização, trazendo as boas novas, a esperança, como gosta de dizer, entre os índios do Maranhão, especialmente os Tenetehara do Pindaré e do Caru, bem como os Guajá. Sua ação tem sido de apoio às reivindicações dos índios, de orientação, quando lhe pedem, em alguns posicionamentos, e de presença política discreta, mas inabalável, em favor dos índios e dos pobres lavradores, em todo o município de Bom Jardim, onde duas vezes ao ano faz desobriga.

Os Tenetehara do Pindaré estão mais seguros de si, conscientes e determinados do que o eram antes de 1975, o ano de sua virada. Hoje somam mais de 600 pessoas e mantêm contato com seus patrícios de outras regiões, inclusive os Tembé, do Pará, participando em reuniões nacionais de associações de defesa à causa indígena. Nos últimos dez anos alguns se mudaram para a terra indígena Caru, onde a terra é boa para a agricultura, mas também onde há perigo de coletores de coco, caçadores e lavradores dos povoados da outra margem do rio, bem como madeireiros, ousarem tomá-la por invasão em massa. Um filho do velho Manuel Viana, que viria a falecer em 1991, e que se tornara inclusive crente, pelos ensinamentos do missionário Bendor-Samuel, na década de 60, passou a ser o líder mais importante dos Tenetehara do Pindaré, e nos últimos cinco anos, também daqueles do Caru. Seu irmão mais novo é o atual chefe do P.I. Caru.

Terra Indígena Caru

Em fins da década de 1950, o alto Pindaré se esvaziara da presença de índios Tenetehara. Com o fim do comércio de óleo de copaíba, Camiranga, o grande entrepreneur dos Tenetehara da década anterior, mudara-se para as terras do posto Gonçalves Dias, fundando a aldeia Faveira, onde lá morreria, em 1958. Com ele desceriam quase todos os sobreviventes das fortes e contínuas epidemias que assolaram os Tenetehara nesse período. A região parecia sem gente, seja índios ou civilizados, já que os espaçados grupos de índios Guajá que lá viviam tocavam sua vida de modo tão discreto que mal se percebia a sua existência. No médio Pindaré e na Estrada do Sertão, as aldeias tenetehara haviam sofrido igual destino, até mais abruptamente, pois foram tragadas pela chegada maciça de nordestinos que demandavam as paragens do rio e o caminho do sertão, fundando centros de roças e povoados. Alguns deles iriam se tornar bastante importantes nos anos seguintes, como Alto Alegre, na beira do Pindaré, e a cidade de Santa Luzia, na estrada do sertão.

Raimundinho Guajajara, o contínuo da delegacia da FUNAI, em São Luís, referido no Capítulo II, é um exemplo da derrocada dos Tenetehara dessa região. Nasceu em 1942 na velha aldeia Lagoa Comprida, fundada por volta de 1870, ao lado do lago Tarupau, que cai no rio Pindaré próximo da Colônia Pimentel, não muito distante da T.I. Pindaré. Alguns anos depois sua família mudou-se para a aldeia Anajá, na estrada do Sertão, atraída pela chegada de imigrantes que pagavam algum dinheiro para mão-de-obra na abertura de roças. Aos poucos seus pais e seus seis irmãos foram morrendo de sarampo e gripes fortes. Seu padrinho, um civilizado, o levou para Santa Inês, onde viveu alguns anos fazendo trabalhos manuais. Depois ele resolveu voltar para seu povo e foi viver na aldeia do posto Gonçalves Dias. Tendo aprendido a ler e escrever, e com uma disposição de humildade em servir, mudou-se para São Luís em 1966 onde conseguiu o emprego de contínuo na delegacia. Ao se aposentar, em 1996, voltou para o P.I. Pindaré, mas terminou se fixando em Santa Inês, em um complicado casamento com uma brasileira.

O alto Pindaré iria ser repovoado por Tenetehara a partir de 1966, quando o cacique Marcelino, oriundo da aldeia Tira Couro, a última do baixo rio Grajaú, a região que nunca fora assistida pelo SPI, subiu o rio Pindaré e assentou uma aldeia na beira do rio, alguns quilômetros abaixo da embocadura do rio Caru. O chefe do posto Gonçalves Dias prestou algum auxílio nessa empreitada e o posto continuou assistindo àqueles que vinham de Tira Couro à procura de terras livres. Naqueles anos muitos brasileiros também estavam subindo o Pindaré em busca de terras livres, “libertas”, eles diriam (Santos 1988). Dois anos depois, já cercado por muita gente, Marcelino, dois cunhados e mais uns 25 Tenetehara, incluindo alguns civilizados casados com Tenetehara, mudaram-se para a outra margem do rio e fundaram uma aldeia com o nome de União.

Em 1970, a aldeia União tinha 40 pessoas, e mais Tenetehara estavam a caminho. Marcelino comandou a aldeia até sua morte, em 1974, sendo substituído por seu primo-irmão Marciano. Nesse ano a FUNAI estabeleceu o P.I. Caru para dar assistência a esses Tenetehara e firmar bases para demarcar essa área. O primeiro chefe do P.I. Caru foi um auxiliar de enfermagem do órgão, Lúpercio Santos, cuja presença iria ajudar a dar legitimidade federal à pretensão de demarcação. A contínua chegada de imigrantes, que iam fundando e habitando novos povoados ao longo dos rio Pindaré e Caru, tais como Mineirinho, Impueira, Boa Vista, no Pindaré, e Novo Caru, Escada e São João do Caru, no rio Caru, não augurava boas novas e sim mais pressão sobre as terras que os Tenetehara queriam manter como suas. A forte presença dos líderes Tenetehara e do posto indígena os impedia de atravessar os rios e invadir essas terras entre o Pindaré e o Caru.

Em 1972 a FUNAI já tinha traçado planos de demarcar terras para os índios Urubu-Ka’apor, Tembé e Guajá que viviam entre os vales do Pindaré e a margem direita do rio Gurupi. A idéia era aproveitar um artigo do decreto presidencial de 1961, que instituíra a Reserva Florestal do Gurupi, o qual declarava que as terras de uso indígena deveriam ser geridas pelo órgão indigenista. Assim, se as divisas originais norte e leste da reserva, formadas por uma linha seca que ia do povoado Itamaracá, no rio Gurupi, até a altura do antigo povoado Colônia Pimentel, fossem consideradas como terra indígena, as terras dos Tenetehara da margem esquerda do médio Pindaré, cuja demarcação havia sido projetada desde 1941, iriam ficar dentro dessa reserva. Porém, naquela altura uma boa parte dessas terras estava tomada por uma multidão de lavradores, e inclusive por um projeto de colonização da SUDENE. Assim, a FUNAI abriu mão das terras da margem esquerda do Pindaré e do Caru, desde a antiga Colônia Pimentel até o igarapé Turizinho, mas procurou delimitar uma única área contínua, com cerca de 780.000 hectares, abrangendo a margem direita do Gurupi, de Itamaracá até o igarapé do Milho, o vale do médio e alto Turiaçu, a serra Azul e o Maciço do Tiracambu, e as terras situadas entre o rio Caru e o Pindaré, sendo que a divisa sul seria formada do rio Pindaré ao Gurupi, a partir da altura do igarapé da Água Branca, afluente do Pindaré, passando pelas cabeceiras do Caru e daí até tocar no igarapé do Milho, que desemboca no rio Gurupi.

Era um plano ambicioso, mas ainda possível de ser realizado, pois no perímetro projetado não havia invasores, e a parte deixada de fora é a que já fora tomada. Entretanto, em 1977, o departamento de terras da FUNAI, nesse tempo dirigido pelo Coronel Solon, achou por bem criar duas áreas separadas, abrindo um largo corredor de 30 km entre elas. Havia pressão política para abrir mais terras da reserva florestal para o estabelecimento de fazendas, e estas eram terras de ninguém, pois já não mais dos índios e ainda não formalizadas pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF -, atualmente IBAMA, o órgão encarregado da proteção de florestas e reservas florestais da União, que deveria cuidar do restante das terras da Reserva Florestal do Gurupi. Assim, foram criadas duas áreas indígenas distintas, e os grupos Guajá que tinham seus territórios nesse corredor ficaram perdidos no meio dos invasores, pequenos posseiros e novos fazendeiros. Muitos foram contatados por acaso, tratados como animais e acabaram morrendo ou fugindo mais para dentro da mata.

A área maior, compreendendo o vale do Turiaçu, foi denominada Terra Indígena Alto Turiaçu, com 515.000 hectares, a qual absorveu quase todas as aldeias urubu-ka’apor, as terras do lado maranhense do velho posto indígena Pedro Dantas, agora cognominado Canindé, que serve aos Urubu-Ka’apor, Tembé e remanescentes Timbira, bem como o território de vários grupos Guajá que estavam sendo contatados no alto rio Turiaçu. Em 1973, um posto indígena havia sido criado para os Urubu-Ka’apor (P.I. Alto Turiaçu), enquanto os Guajá recém-contatados eram assistidos por um posto de atração, que alguns anos depois virou um posto indígena comum (P.I. Guajá), ambos nas margens do rio Turiaçu. Atualmente vivem nessa terra indígena cerca de 600 Urubu-Ka’apor, dois grupos Guajá, com 54 pessoas, pouco mais de uma centena de índios Tembé e duas dezenas de descendentes dos Timbira Kre-jê.

A outra parte da Reserva Florestal do Gurupi a ser delimitada para os índios foi cognominada Terra Indígena Caru, compreendendo uma área de 172.667 hectares, cuja demarcação foi concluída em 1978, com a ajuda dos índios Tenetehara do P.I. Caru. Os limites dessa terra ficaram sendo o curso do rio Caru, a oeste e norte, o curso do Pindaré, a leste, e o igarapé da Água Branca e os 70 quilômetros de linha seca até as cabeceiras do próprio Caru, ao sul. Embora não compreendendo todo o chamado alto Pindaré, que para tanto teria que incluir terras da margem direita desse rio, essa terra indígena representa o que sobrou do berço da formação étnica dos Tenetehara e o ponto de partida de suas migrações para oeste e sudeste. Foram a grande coincidência de fatos, a determinação de líderes Tenetehara, a presença misteriosa até então de índios Guajá e a firmeza de alguns funcionários da FUNAI que possibilitaram a demarcação dessa terra indígena.

Entre 1983 e 1988, diante da intensidade dos desdobramentos econômicos e sociais que estavam vindo com a construção da Estrada de Ferro Carajás, que passava ao lado da Terra Indígena Caru, a Companhia Vale do Rio Doce estabeleceu um convênio de reparação com a FUNAI. O convênio visava a demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas, a proteção dos seus limites, a assistência à saúde dos índios, e o fortalecimento das economias indígenas. Os recursos postos à disposição da FUNAI eram de tal monta que atrairiam novos imigrantes tenetehara interessados em usufruir dessas benesses. Com isso, a T.I. Caru iria passar por um período de alvoroços, que pareciam apontar para novas mudanças. Sua população aumentaria para mais de 100, com a vinda de diversas famílias tenetehara de outras áreas indígenas. Novas aldeotas iriam se formar na beira do rio, e cada uma queria equipar-se de toda a infra-estrutura possível. Cinco postos de vigilância foram criados e acabaram sendo entregues, por pressão política, a líderes Tenetehara, filhos e amigos, não da região do Caru, mas do Bacurizinho. O Tenetehara João Madrugada, monitor bilingüe da aldeia Bananal, no Bacurizinho, dono de uma retórica de exigência bastante forte, se tornou a figura mais importante desse período. Em primeiro lugar, fez-se chefe do P.I. Caru, aliando-se aos Tenetehara que se tornaram chefes dos postos de vigilância e membros da Frente de Atração aos índios Guajá, criada naqueles anos. Entre estes estavam alguns dos principais líderes que haviam batalhado com grande empenho pessoal na demarcação das terras da região de Grajaú-Barra do Corda, como Adriano Carvalho e José Potiguara. Aliado a esses Tenetehara, por conveniência, estava o então chefe do P.I. Caru, Raimundo Mourão, que conseguiu ser deslocado para a chefia do P.I. Awá, o posto que servia de base à Frente de Atração aos Guajá daquela região.

Até o fim do desembolso dos recursos do Convênio CVRD-FUNAI, por volta de 1989, os cabeças da administração da T.I. Caru viveram com bastante dinheiro vivo, tanto de seus salários quanto dos empréstimos a fundo perdido que recebiam para financiar lavouras de arroz e a criação de gado bovino. Muito desse dinheiro era gasto na cidade de Santa Inês, onde diversos deles ficaram conhecidos por algumas extravagâncias e esbanjamentos. João Madrugada chegou a ter, em pouco tempo, mais de 100 cabeças de gado e roças de arroz de mais de 40 hectares. A mão de obra para atender a essa atividades era contratada de alguns índios locais e dos lavradores civilizados que viviam pauperrimamente do outro lado do rio. O povoado Impueira ou Auzilândia, confronte ao P.I. Caru, aumentava sua renda pelos gastos desses Tenetehara, que naturalmente eram odiados e respeitados na mesma medida.

Assim, por vias inesperadas, o Caru despontou como um lugar da nova força política do povo tenetehara. João Madrugada fez o possível para ampliar seu prestígio político e se tornar delegado da 6ª DR, em São Luís. Faltava-lhe, porém, diplomacia política para negociar e aceitar divergência. (Essa qualidade estaria presente no filho homônimo de Pedro Marizê, antigo cacique do Bacurizinho, que se tornou delegado da 6ª Delegacia Regional, entre 1985 e 1988. Entre 1994 e 1997, José Arão, filho do chefe do posto do P.I. Bacurizinho, Alderico Lopes, também se tornaria delegado, consagrando a ambição do pai, o orgulho dos parentes, e a inevitável suspeita dos demais. Porém, nessa ocasião a delegacia já não tinha o poder dos anos anteriores, estando restrita sua jurisdição a apenas os postos indígenas do rio Pindaré e da própria T.I. Bacurizinho.)

Com o fim dos recursos de fora, os Tenetehara do P.I. Caru tiveram de cair a um ritmo de vida mais modesto e menos agitado. Os índios da região de Grajaú-Barra do Corda retornaram às suas terras e a área ficou sem liderança de peso. O velho cacique Clementino, sobrinho do fundador Marcelino, não conseguia segurar as exigências dos homens de meia idade e terminou permitindo a entrada de moradores do outro lado do rio para quebrar coco babaçu em troca de um pagamento de renda. Enquanto pode eles pressionaram a FUNAI e a CVRD por investimentos, e inclusive chegaram a armar uma espécie de seqüestro ao forçar uma parada do trem de carga da companhia para exigir o desembolso de novos recursos. Nos anos 90 alguns Tenetehara mais afoitos chegaram a franquear a terra indígena para arrendamento a lavradores e quebradores de coco babaçu, e até para madeireiros da região, uma prática que viam sendo usada pelos Tenetehara de outras áreas indígenas.

Diante disso, outros Tenetehara se posicionaram contra e passaram a instar a 6ª Delegacia a tomar providências para expulsar quem já estava dentro da terra indígena pelo terceiro ou quarto ano, ao mesmo tempo em que tentavam convencer os Tenetehara arrendadores a não usar desse meio para ganhar a vida. A polícia federal foi convocada pela FUNAI e chegou a ir à área duas vezes, ameaçando os infratores. Em 1995 alguns Tenetehara do P.I. Pindaré, movidos pelo receio de perder essas terras e pelo desejo de ampliar sua órbita de força política, resolveram tomar a iniciativa de se mudar para o Caru, tomar de conta do posto indígena, expulsar os invasores e estabelecer um novo modus vivendi com os povoados do outro lado do rio. É o que vêem tentando fazer. Seja como vier a ser no futuro, o que isto representa é uma tentativa de juntar as duas áreas, de compreender o rio Pindaré, ou ao menos os dois trechos que são do controle dos índios, como uma unidade, algo que havia sido abandonado nos últimos cinqüenta anos.

Um balanço dos territórios tenetehara.

Apesar dos esforços de alguns inspetores do SPI, especialmente José Maria da Gama Malcher, que realizou o primeiro plano completo de demarcar as áreas indígenas no Maranhão entre 1941 e 1942, e que, como dirigente do SPI (1946-50, como chefe da SOA; 1950-56, como diretor) acompanharia os trabalhos dos inspetores subsequentes, especialmente Sebastião Xerez (1948-62), a definição e demarcação conclusiva e oficial dos territórios indígenas do Maranhão não se deu nesse período. De certa forma dá para sentir nas atitudes de conciliação de Xerez, a partir de meados da década de 1950, quando o Maranhão começa a receber um influxo intenso e caótico tanto de imigrantes pobres em busca de terras livres de donos quanto de fazendeiros com capital para comprar as velhas fazendas regionais, que ele perdia as esperanças de realizar essas demarcações nos tamanhos projetados em 1942. Pode-se julgar que Xerez não se mantivera fiel a si mesmo e aos desígnios projetados pelo melhor que havia no SPI, mas, na verdade, poucos - seja indigenistas, antropólogos, políticos regionais ou nacionais - acreditavam então que fosse possível demarcar tantos razoavelmente extensos territórios indígenas. Só os próprios índios mantinha fé.

Duas conseqüências ocorreram desse posicionamento. O primeiro foi a perda das terras indígenas do médio Pindaré e do baixo Zutiua, inclusive das últimas aldeias da Estrada do Sertão, na medida em que novos imigrantes ocuparam as terras usadas pelos Tenetehara e os forçaram a abandonar suas aldeias. A maioria deles foi juntar-se aos Tenetehara do baixo Pindaré, outros se incorporaram aos lavradores brasileiros e assim perderam as bases de preservação de sua identidade étnica. Este foi, sem dúvida, um dos principais motivos da queda de população tenetehara na região do Pindaré, conforme previsto por Wagley e Galvão quinze anos antes.

A segunda conseqüência foi, por sorte, mais salutar. A criação, no papel embora, da Reserva Floresta do Gurupi, ajudou a preservar uma vasta área de floresta tropical amazônica por alguns anos, dando tempo para permitir a demarcação das atuais terras indígenas do Alto Turiaçu, com 513.000 hectares, onde vivem índios Urubu-Ka’apor, Guajá, Tembé e Kre-jê, e a Caru, com 172.000 hectares, onde vivem Guajá e Tenetehara do alto Pindaré e Caru. Por vias tortas e inesperadas, portanto, diversos territórios dos Tenetehara terminaram sendo demarcados e garantidos. Outros ficaram perdidos e constituem hoje terras de fazendeiros, mas do que de pobres lavradores.

A década de 1970 foi terrivelmente difícil tanto na vida política quanto na vida rural brasileira. A Amazônia foi aberta pelo regime militar para a entrada de grandes investimentos agropecuários, minerais e hidrelétricos, bem como para o assentamento de lavradores pobres e sem terra. Sendo o Maranhão o estado mais oriental da Amazônia, foi para aí que se dirigiram as primeiras levas de lavradores nordestinos sem terra e de especuladores com capital para comprar patrimônio. Muitos dos novos imigrantes chegavam e demoravam não mais que alguns anos na terra, a qual desbravavam de suas matas e abriam o caminho para a entrada dos grileiros e pecuaristas de médio porte. Desse modo, grande parte da Amazônia oriental foi devastada em menos de três décadas.

O desenrolar desse processo parecia augurar tempos muito ruins para os índios que habitavam essas terras. Os exemplos históricos de outras frentes de expansão, onde os índios eram sempre perdedores, não deixavam margens para expectativas positivas. Dada a intensidade desse novo surto expansionista, era de se supor que o resultado viesse a ser a perda das terras indígenas e o aniquilamento de muitas de suas sociedades e culturas. Porém, afortunadamente, a resistência que os Tenetehara e outros povos indígenas levantaram contra esse vendaval socioeconômico esteve suficientemente à altura para que não fossem derrotados, envolvidos, subordinados e dizimados.

Ao final, os Tenetehara lograram manter uma porção bastante substantiva dos territórios que efetivamente ocupavam por volta de meados deste século. Defenderam e conseguiram garantir essas terras graças também à ação do estado brasileiro, representado pelo SPI e pela FUNAI.

Há que se entender que a luta consciente e determinada do povo Tenetehara nasceu de sua vontade cultural de manter sua identidade étnica, de ser um povo autônomo com uma visão própria do mundo. Essa vontade se afirmou acima de uma outra, também bastante forte, que é a de fazer parte da sociedade brasileira mais ampla. Esse sentimento de auto-afirmação se concretizou na consciência de que a posse e o controle de suas terras constituem a base imprescindível sobre a qual podem exercer sua autonomia étnica. Isto não quer dizer que os Tenetehara, em outros tempos, não tivessem uma consciência de sua identidade étnica e do valor de suas terras. Com efeito, há muitos anos eles vinham defendendo de várias formas suas terras da invasão de fazendeiros e posseiros. Porém, até a década de 1950, tinham uma atitude mais concessiva. Freqüentemente, por exemplo, permitiam a lavradores pobres o acesso a um pedaço de suas terras para viver e criar suas famílias. Em muitas ocasiões, na verdade, esses lavradores terminavam se incorporando ao mundo tenetehara por via do casamento de seus filhos. Nesse espírito concessivo, os Tenetehara podiam até ser persuadidos, pela pressão da patronagem social ou pela ameaça da violência, a se mudarem de um lugar para outro, deixando as terras que usavam para o domínio de um novo senhor. Foi assim que perderam controle sobre as terras que tinham no baixo rio Grajaú, ainda na década de cinqüenta, terras que habitavam desde pelo menos 1830. Nos anos setenta, no entanto, nenhum argumento ou pressão os desviou de sua determinação de não abrir mão de nenhuma nesga das terras que consideravam suas.

Um outro motivador básico da demarcação das terras tenetehara foi o desencadeamento de ações políticas e administrativas por parte da FUNAI, especialmente levadas a cabo por muitos indigenistas que trabalharam com esses índios na década de 1970. Esse desencadeamento foi propiciado por um motivo superior que se desenvolveu no seio da sociedade brasileira: a simpatia por parte substancial e influente da sociedade civil pela sorte dos índios brasileiros. Por sua vez, essa simpatia tem origem em vários motivos, desde históricos quanto atuais, desde nacionalistas a internacionalistas. A simpatia da sociedade civil se traduziu no apoio dado por jornalistas, advogados, médicos, a opinião pública em geral, e por que não reconhecer, por antropólogos militantes e missionários católicos ligados à Teologia da Libertação. A imprensa acompanhou muitas das ações que os Tenetehara desencadearam com o fim de expulsar posseiros e invasores de suas terras, deu espaço a suas reivindicações e reclamações contra a inércia e incúria de funcionários do órgão indigenista, e ajudou a fustigar os altos escalões do regime militar que abraçavam a idéia de que as terras indígenas poderiam ser mais produtivas se entregues às mãos de agropecuriaristas ou de lavradores sem terra.

Não parece temerário dizer que naqueles anos índios e brasileiros, ou uma parte substancial de brasileiros, se uniram em torno do objetivo da demarcação das terras indígenas. Não só os Tenetehara, mas muitas outras etnias se beneficiaram dessa união e conseguiram a demarcação de suas terras. Tal união foi aos poucos diminuindo de vigor e boa parte das terras indígenas que não foram demarcadas entre 1975 e 1985 ficaram sob suspensão durante as administrações seguintes da FUNAI. É uma infeliz ironia da história que o processo de redemocratização do Brasil, a partir de 1985, fez diminuir a simpatia da sociedade civil brasileira pela sorte dos índios. O que não quer dizer que tenha terminado, e que não volte no futuro.

De todo modo, não se pode afirmar com absoluta certeza que as terras demarcadas dos Tenetehara, que lhes dão suporte étnico e sustento econômico, estejam definitivamente garantidas para eles. A história não corre por linhas certas, nem obedece aos desejos nobres dos homens. Desde a constituição de 1934, as terras indígenas são de jure da União e estão sob a jurisdição do órgão indigenista. Os índios, portanto, não têm a propriedade plena sobre elas, apenas seu usufruto exclusivo. Eles não têm o direito de vender ou arrendar porções dela. Isto pode ser considerado como uma vantagem para a preservação da integridade dessas terras, já que a tentação de obter dinheiro pela venda ou pelo arrendamento pode ser muito grande. Basta lembrarmos que foi com o direito de vender terras, concedido pelo governo americano, que os índios americanos terminaram perdendo um terço de seus territórios entre 1877 e 1923, quando tal direito foi revogado.

O estado continua com bastante espaço para interferir nos desígnios dos povos indígenas, e especialmente de suas terras. Durante os tempos do SPI e até a meados da década de 1970, a FUNAI podia tomar a iniciativa de arrendar parte das terras indígenas ou explorar certos recursos naturais sem pedir permissão aos índios. Embora essa prática tenha se tornado pouco usada desde então, há sempre o receio de que o estado considere sua prerrogativa subtrair dos índios terras que considere imprescindíveis, tais como aquelas na faixa da fronteira. Mesmo a constituição de 1988 manteve, no artigo 232, uma cláusula que permite a remoção de populações indígenas em caso de calamidade pública, ressalvado o posterior retorno dos removidos. Além do mais, a regulamentação da demarcação de terras indígenas não é assunto constitucional nem legislativo, mas mera determinação do poder executivo. Está sob a mercê de decretos administrativos do governo federal, que pode, em tese, reabrir um processo de demarcação que não tenha sido concluído até o seu ponto final, que é o registro da terra indígena no Serviço de Patrimônio da União. Embora as terras indígenas dos Tenetehara já tenham passado por todas as etapas de legalização, ninguém pode descartar o poder discricionário de autoridades antiindígenas. Basta lembrarmos que há diversos projetos de lei no Congresso Nacional que ameaçam terras indígenas já totalmente legalizadas, como as terras dos Yanomami e dos Kayapó. Lembremos também, como já citado neste livro, que a FUNAI, em 1978, transferiu para a SUDENE e um seu projeto de assentamento, uma parte das terras dos Urubu-Ka’apor.

No entanto, a ameaça mais perturbadora à preservação da integridade das terras tenetehara vem da possibilidade muito real do desenvolvimento econômico gerado no meio rural maranhense. Seguindo os moldes atuais, tal desenvolvimento poderá trazer não somente um incremento na densidade demográfica e na pressão fundiária, como novas mentalidades e atitudes que poderão diminuir o sentido de responsabilidade do estado brasileiro em relação aos índios. Os brasileiros vizinhos às terras indígenas em nenhum momento deixaram de ver essas extensões de florestas e matas de transição com um agudo desejo de se apoderar delas. Nas regiões mais distantes dos olhos dos índios eles se aproveitam para caçar e coletar produtos da floresta; em outras, onde a densidade indígena é pequena, já chegaram ao ponto de fazer invasões programadas. De fato, duas invasões em massa já ocorreram na T.I. Alto Turiaçu, uma em 1990 e outra em 1993, ambas comandadas por grileiros de terras oriundos das cidades de Imperatriz e Bom Jardim. A expulsão desses invasores requereu os esforços dos próprios índios Urubu-Ka’apor, Guajá, Tenetehara-Tembé e Timbira, bem como dos chefes dos postos indígenas daquela área, e da polícia federal. Um invasor foi morto e muitos saíram feridos, e o fato pode voltar a se repetir. A T.I. Caru, cercada de povoados na beira dos rios Caru e Pindaré, é extremamente vulnerável. Se os Tenetehara que lá vivem seguirem o ardiloso caminho de arrendar terras para roçados, a ameaça de invasão em massa poderá um dia se concretizar. Nesse caso, que condições políticas estariam prevalecendo para que houvesse um espírito de responsabilidade por parte do estado e dos seus servidores na defesa dessas terras?

Por sua vez, a presença hegemônica da cultura brasileira constitui, também, uma ameaça até mais insidiosa à integridade étnica do povo tenetehara. A cada dia surgem novas formas de encantamento e talvez de ludibrio que podem levar os índios a abrir a guarda. A expectativa de melhores condições de vida e do consumo de bens industrializados seduz os índios para a vida civilizada, com todas as artimanhas nela envolvidas. A própria educação de seus filhos em cidades e a provável falta de empregos para eles pode causar frustrações só resolvíveis com mais integração e menos afirmação étnica. O exemplo da venda indiscriminada de madeira que os Tenetehara das terras indígenas de Grajaú e Barra do Corda, inclusive da grande e impoluta área de floresta tropical do Araribóia, com conseqüências devastadoras para o seu bem estar, leva a crer que a inviolabilidade dessas terras pode ser quebrada pelos próprios Tenetehara. E se for descoberto ouro ou outro metal de garimpo nessas terras? E se aos poucos os Tenetehara começarem a arrendar lotes de terras para lavradores plantarem roças ou fazerem pasto para gado? Tal, na verdade, já vem acontecendo no Pindaré e no Caru, e poderá vir a acontecer em outras áreas. Eis porque, de uma forma irônica, a garantia das terras tenetehara pode ser prejudicada pelas novas contradições desenvolvidas no seio da sociedade tenetehara em sua busca de autonomia e liberdade.

No total, as terras indígenas dos Tenetehara que habitam o estado do Maranhão somam, incluindo aquelas compartilhadas com os Guajá, mas excluindo a T.I. Alto Turiaçu, pela maior presença dos Urubu-Ka’apor, aproximadamente, 846.000 hectares. No amplo processo de demarcação, que vai de 1920 a 1980, perderam-se boa parte das terras do médio e alto Pindaré, as do baixo Zutiua e as do rio Grajaú, áreas habitadas por Tenetehara nas primeiras décadas do século. É de lamentar que ao menos algumas dessas terras não tenham sido incorporadas ao patrimônio indígena pela falta de empenho do SPI/FUNAI nas décadas de 1960 e 1970. No entanto, reconhecendo a intensa e caótica movimentação de imigrantes a partir de meados da década de 1950 na região do Pindaré e da década de 1960 na região Barra do Corda-Grajaú, junto com a pouca disponibilidade de recursos e a mentalidade aculturativa do órgão indigenista, e adicionando-se a isso a incúria e o desleixo de tantos funcionários do órgão, é notável constatar que essas terras indígenas tenetehara foram afinal demarcadas, e que elas constituem um quinhão razoável da herança histórica desse povo indígena.
 
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