quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A redenção do povo Pataxó Hãhãhãe






Hoje o Supremo Tribunal Federal estará decidindo o destino dos índios Pataxó Hãhãhãe que vivem na Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu.

O ministro-relator Eros Grau deverá proferir seu voto sobre a ação impetrada pela FUNAI em 1982 pedindo a anulação dos títulos de terras conferidas pelo governo da Bahia a particulares dentro do perímetro daquela terra indígena.

A Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu foi demarcada em 1937 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em conjunto com o governo do estado da Bahia. Porém, diversos acontecimentos se sucederam que levaram à morte e a dispersão dos índios ali localizados e posteriormente à invasão de não indígenas e o conseqüente esbulho daquelas terras.

O voto de Eros Grau poderá ou não indicar um caminho para os votos dos demais ministros. Ou poderá acontecer o que aconteceu no dia 27 de agosto p.p. quando o voto do ministro-relator Ayres Britto sobre a manutenção da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol de tão bom e favorável aos índios daquela terra foi pedido vistas por um outro ministro do STF.

Se o voto do ministro Eros Grau for seguido de um pedido de vistas aí vai ficar chato para o STF. Mais um caso de incapacidade de decisão por parte da nosso Corte maior de justiça.

Já estão em Brasília cerca de 200 índios Pataxó ansiosos por ouvir um pronunciamento final sobre esse processo que já dura 26 anos, sem decisão e sem ao menos ter sido posto em votação, mas sempre com promessas de decisão por parte dos sete ministros do STF que já o tiveram nas mãos. Os dois últimos foram exatamente Nelson Jobim e o atual Eros Grau. Jobim sentou em cima do processo por sete anos; mandou até que a FUNAI pagasse uma perícia agronômica para determinar que propriedades estariam dentro e quais estariam fora da terra indígena. Só isso custou R$ 700.000,00 à FUNAI, sendo que a última parcela foi paga em 2003.

A história dessa terra indígena é dramática, cheia de acontecimentos inesperados. É singular e especial em muitos aspectos, mas também representa um tanto a história de outros tantos povos indígenas que foram contatados e sofreram enormes perdas populacionais e territoriais no século XX, após o contato com as frentes agrícolas de expansão e já com a intervenção do órgão indigenista oficial, o SPI.

Os atualmente chamados Pataxó Hãhãhãe compreendem os sobreviventes (e descendentes) de alguns povos indígenas que viviam entre os rios de Contas, ao norte, e o rio Pardo, ao sul, na parte sul do estado da Bahia e leste de Minas Gerais. Uma vasta região de matas que praticamente passou incólume pela colonização até o início do século XIX.

Já se ouvira falar desses povos desde o século XVI, e eram conhecidos genericamente como Aimorés, inimigos dos Tupiniquim da costa sul da Bahia. A Coroa portuguesa os declarou, a certa altura, "incivilizáveis", tal era sua rejeição às tentativas de aproximação e contato e tal era sua insubmissão ao domínio militar.

No começo do século XIX essa região começou a ser alvo de interesse de povoamento e os povos indígenas que ali viviam começaram a ser atacados. O príncipe Dom João, ao chegar ao Brasil em 1808, emitiu um alvará que permitia a formação de bandos de ataques a esses índios do leste de Minas Gerais e sul da Bahia, com direito a escravizar os sobreviventes pelo prazo de 10 a 15 anos. Entre os alvos dessas bandeiras estavam os Botocudos e Kamakã, ao sul, e os Pataxó, Mongoió e Baenã, ao norte. (A foto acima, de um quadro pintado pelo pintor e naturalista francês Jean-Baptiste Debret, por volta de 1820, representa um índio Kamakã daquela época, quando eles já haviam sido atacados por frentes militares e diversos grupos haviam se entregues ao domínio luso-brasileiro.)

Durante todo o século XIX muitos aldeamentos indígenas foram sendo incorporados à população pobre da região enquanto suas terras iam sendo tomadas e transformadas em vilas e arraiais. A ordem religiosa dos capuchinhos estabeleceu diversas missões com esses índios e essas missões depois serviram de base para a chegada de brancos que as transformaram em cidades.

Entretanto. nem todos os aldeamentos se submeteram ao poder militar e religioso brasileiro. Alguns grupos nunca se entregaram e passaram a viver nas matas ainda intocadas daquela região, o sul da Bahia.

Já no começo do século XX, quando a cultura do cacau se viabilizou economicamente e passou a se expandir para o interior das matas, as terras onde viviam os grupos autônomos dos Pataxó, Kamakã, Mongoió e Baenã foram cobiçadas e atacadas.

A história de ataques a índios foi romanceada em diversos livros pelo escritor Jorge Amado, natural de Ilhéus, o centro comercial da região.

Os ataques de jagunços dos donos do cacau chegaram a tal ponto que chamaram a atenção do governo, que convocou o Marechal Rondon para resolver o problema. A partir de 1920 ele passou a enviar expedições de sertanistas para tentar entrar em contato com os grupos autônomos. Em 1922 o sertanista Telésforo Fontes fez um contato pacífico com um grupo Baenã e aos poucos foi contatando os demais. Em 1926, o SPI e o governo da Bahia decidiram reconhecer uma área de 50 léguas quadradas para servir como horto florestal e como reserva indígena.

Não se sabe exatamente o que seria essa área, pois ela nunca foi delimitada. Ao longo dos anos seguintes, o SPI tentou juntar os diversos grupos indígenas contatados dentro dessa área e todos perto do posto indígena ali formado. Outros povos que se agregaram foram os sobreviventes do antigo povo Tupinambá, que vivia na vila de Olivença, ao sul de Ilhéus, e os Kiriri-Supaiá, que viviam ao norte da Bahia.

Em 1936, finalmente, o SPI e o governo da Bahia demarcam uma terra indígena com uma área estimada em 54.000 hectares, compreendendo matas e campinas. O mapa dessa terra pode ser encontrado no Instituto de Terras da Bahia e faz parte do processo instaurado pela FUNAI a ser definido pelo STF.

Porém, logo em seguida, um ano depois, a Polícia Militar da Bahia ataca inesperadamente o posto indígena Caramuru-Paraguaçu sob o pretexto de que seu chefe, Telésforo Fontes, era comunista e estava armando uma guerrilha contra o governo brasileiro. O ataque foi feroz e matou muitos índios e alguns funcionários do SPI. Dispersou os sobreviventes de tal modo que alguns foram bater no Paraná. Outros foram abrigados em Minas Gerais, em Carmésia, próximo dos Maxakali e dos Krenak, povos que haviam sido contatados um pouco antes e que sobreviviam em pequenas glebas de terra.

Os sobreviventes, renitentes, inclusive os Kiriri-Sapuiá e os Tupinambá, ficaram sem proteção e sem destino certo. Passaram a viver de todo modo possível, inclusive como agregados nas próprias fazendas que iam se formando pelos invasores e por aqueles que passaram a arrendar do SPI, ainda nas décadas de 1940 e 1950.

O arrendamento que o SPI promoveu nas terras dos Pataxó foi mais um ponto desastroso nessa história. No começo controlado por cobrança e pagamento de uns poucos selecionados, depois se abriu para muitos e ao final nem pagamento havia. O posto indígena foi desativado e assim a tomada das terras aconteceu em sua totalidade.

Os detalhes desse processo final e as motivações não são bem conhecidos. Por que o posto indígena foi abandonado e desativado? Que tipo de pressão havia em cima do SPI para se abandonar algo que tinha dado tanto trabalho, inclusive com mortes de funcionários!

O certo é que, por volta de 1970, com a ditadura instalada, tudo parecia irreversível. Mas alguma coisa de inesperado estava no ar. Alguns Pataxó que haviam permanecido na região, e tendo experimentado a desilusão da vida de agregado miserável nas fazendas, começaram a se reunir e buscar meios para recuperar suas terras. Entraram em contato com seus parentes que estavam em Carmésia, MG, e em seguida com a FUNAI e solicitaram ajuda. Aos poucos foram conseguindo alguma simpatia para sua causa aparentemente perdida.

Por volta de 1975 já diversas famílias Pataxó haviam se instalado no perímetro da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu. Isto, por outro lado, atiçou os fazendeiros a tomar providências. Começou assim uma nova fase de violência para com os Pataxó. Nos últimos trinta anos mais de 20 Pataxó foram caçados e assassinados, em geral por pistoleiros contratados pelos fazendeiros. Um deles, Galdino, foi queimado por moleques da classe média brasiliense enquanto dormia num abrigo de parada de ônibuas em Brasília. Morreu em conseqüência das queimaduras por todo seu corpo.

Em 1978, o governador biônico da Bahia, Roberto Santos, resolveu cumprimentar os fazendeiros com o chapéu dos índios e passou a dar títulos das terras ocupadas sob o pretexto de que não havia mais índios -- exatamente quando estavam engrossando as levas de chegada e agregamento dos índios na região. Logo depois, o novo governador, Antônio Carlos Magalhães, completou a obra de seu antecessor. Parecia o fim.

Mas já os Pataxó eram muitos e com índole heróica. No começo o governo federal, pela direção da FUNAI, tentou tirá-los daquelas terras e providenciou uma terra estadual para eles se acomodarem e esquecerem suas terras originais. Muitos foram transferidos para lá, pois estavam passando muitas dificuldades nos acampamentos improvisados entre fazendas. Mas, um dia, um grupo de Pataxó, com a ajuda de diversos indigenistas jovens da FUNAI, resolveram entrar na fazenda que havia tomado o antigo posto indígena. Lá se instalou esse grupo e essa foi a primeira retomada de terras pelos Pataxó.

Ao longo desses 30 anos os Pataxó fizeram muitas retomadas, sempre com a disposição da FUNAI para ajudá-los e para indenizar as benfeitorias dos fazendeiros. A parte sul da terra indígena é onde se agrega a maioria das comunidades Pataxó.

As terras retomadas atualmente somam cerca de 18.000 hectares, isto é, um terço de sua terra demarcada em 1936. Porém os fazendeiros têm poderosos aliados políticos e sempre estão pedindo reintegração de posse, mesmo das terras que já foram retomadas e as indenizações pagas.

A FUNAI entrou com o processo que ora está sendo discutido pelo STF em 1982. Quer a anulação dos títulos conferidos pelos governadores da Bahia entre 1978 e 1982. Simples e claro.

Que haverá de mistério em tanta demora para a Corte Suprema de Justiça da nação deixar de lado e não se decidir? Haverá prova maior do descaso e da injustiça do nosso sistema jurídico?

O caso Pataxó Hãhãhãe da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu é especial, mas agrega em si muita coisa de outros casos de esbulho de terras indígenas na história recente do país. O heroismo do povo Pataxó é evidente. Quase incompreensível de tanta teimosia e determinação. Algo os move a buscar a recuperação dessa terra. É a busca da reconstituição de sua identidade, que foi desmembrada pela violência e cujos pedaços vêm sendo ajuntados pelos seus líderes, por suas mulheres, pelo olhar esperançoso de seus filhos.

Quisera que os ministros do STF soubessem dessa história. Ao menos sentissem um pouco dela.

Hoje os Pataxó Hãhãhãe falam exclusivamente o português. Perderam sua língua materna no êxodo forçado que sofreram. Querem recuperá-la e muitos estão aprendendo a língua de um povo próximo, os Maxakali, que conseguiram mantê-la apesar do confinamento a que foram submetidos. Querem reativar sua vida cultural, agregando os aspectos de sua vida de brasileiros rurais que vêm experimentando há tantos anos.

Que o STF dê essa chance a um povo indígena brasileiro, faça justiça a esses injustiçados e lave a honra da nação brasileira devolvendo aos Pataxó as terras que lhes foram usurpadas.

Nenhum comentário:

 
Share