segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas em questão

Em artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, o Relator Especial para Direitos Indígenas da ONU, James Anaya, fala sobre o aniversário de um ano da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, votado pela Assembléia Geral da ONU.

Anaya discorre sobre a importância dessa Declaração para que os povos indígenas obtenham o respeito devido dos países onde vivem e tenta amenizar as dúvidas sobre os supostos perigos que essa Declaração pode suscitar nas mentes de nacionalistas dos diversos países onde há povos indígenas.

Como se sabe, a Declaração vem sendo criticada por muitas pessoas no Brasil. Entre elas, militares, nacionalistas e anti-indigenistas em geral. Mas também, surpreendentemente, pelo próprio ministro Carlos Ayres Britto, que recentemente proferiu um voto excepcional em favor dos índios da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Assim, uma explicação compreensiva seria de muita importância para que essas pessoas se abalizassem melhor do conteúdo, da importância e das conseqüências dessa Declaração no contexto de outras declarações universais e para os seus países.

No seu artigo, a defesa da Declaração feita por Anaya é cursiva. Parece que não intenciona persuadir ninguém, como se não considerasse que houvesse problemas, ou que os problemas fossem simples resultados de invencionices e preconceitos. Declara inclusive que a Declaração não está tendo problemas de aceitação em outros países, o que não me parece ser uma realidade. Diz que a votação na ONU foi tranqüila, quando, na verdade, teve oposição de muitos países, capitaneada pelo bloco africano, e precisou de muita diplomacia por parte de diversos países para se contornar as dúvidas. O próprio Brasil fez voto separado e com caveats no momento da votação.

Creio que a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas é uma importante declaração para a humanidade. É um documento de redenção e de ascensão dos povos indígenas, o último segmento da humanidade que permanecia ignorado e esquecido, pois se o pensava em vias de desaparecimento da face da Terra. Acontece que muitos povos indígenas sobreviveram ao holocausto da invasão européia em seus países e agora pretendem ter o seu espaço no concerto da humanidade. Essa Declaração chama atenção para esse fato. O reconhecimento do valor dos povos indígenas, de suas culturas, tradições, terras e de seus direitos humanos, individuais e coletivos, é imprescindível para que a própria Humanidade se encontre consigo mesma. Eis o seu sentido maior.

Que perigo ela oferece para os países que a assinaram? Embora a Declaração contenha o artigo que explicita a autodeterminação, que é o conceito a partir do qual a ONU reconhece direitos de autonomia política a nações insurgentes, o que significa ipso facto o direito de povos livres determinarem sua condição política, esse conceito está circunscrito aos tempos políticos atuais em que a soberania dos países onde os povos indígenas estão inseridos prevalece sobre a intencionalidade subscrita no conceito de autodeterminação. A Declaração assim o concebe em espírito e na letra.

Muitos brasileiros de boa fé têm se preocupado com a Declaração e especialmente com as conseqüências que podem advir do conceito de autodeterminação. O Ministério das Relações Exteriores brasileiro tem sido atacado por ter assinado essa Declaração sem consulta com outras instâncias nacionais, inclusive o Ministério da Defesa e o Congresso Nacional.

Por sua vez, os anti-indigenistas tradicionais aproveitam dessa Declaração para vociferar sua atitude política contrária à permanência dos povos indígenas no panorama político brasileiro. Os fazendeiros cujas terras estão em disputa com os índios também clamam uma contrariedade sem fim. Até intelectuais do peso de Denis Rosenfield argumentam irracionalmente, como da razão não fizessem motivo de suas vidas, e como se essa Declaração pusesse o Brasil em perigo iminente de ser desmembrado em centenas de pedacinhos.

Acho, por tudo isso, que a Declaração merece ser discutida em nosso país. Não é matéria simples, mas também não pode ser condenada a esmo.

Conclamo o Congresso Nacional a fazer um seminário para isso e convide a todos para debater esse assunto. Eu mesmo fiz parte das últimas seis reuniões internacionais que discutiram esse tema. Alguns indígenas brasileiros, como Azelene Kaingang e Vilmar Guarany, também estiveram presentes nesses debates. O Itamaraty acompanhou todas as discussões e mantém minutas detalhadas de todos os pontos discutidos. Portanto, a hora é chegada. Assim teremos nossas próprias explicações sobre essa Declaração e uma melhor oportunidade para que todos formem sua melhor opinião sobre o assunto.


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Direitos dos índios não são ameaça

Folha de São Paulo, James Anaya

Os povos e indivíduos indígenas, suas culturas e modos de vida estão à altura de todos os outros em dignidade e valor
HÁ UM ano, no dia 13 de setembro de 2007, a Assembléia Geral da ONU adotou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, marcando o fim de anos de estudos e trabalhos conjuntos entre governos, povos indígenas e especialistas de todo o mundo.

Ao adotar a declaração, a mais importante instituição de sociedade organizada do mundo -as Nações Unidas- proclamou o que deveria ter sido afirmado há muito tempo, mas não era amplamente aceito: que os povos e indivíduos indígenas, suas culturas e modos de vida estão à altura de todos os outros em dignidade e valor.

A declaração não estabelece novos direitos exclusivos para os povos indígenas, mas simplesmente toma princípios básicos de direitos humanos, que são aplicáveis a todos, e os detalha dentro do contexto histórico, cultural, político e social específico dos povos indígenas. Ela visa superar a marginalização e a discriminação que os povos indígenas têm enfrentado em todo o mundo como resultado dos históricos processos de colonização, conquista e desapossamento.

A declaração é também um lembrete de que a opressão contra os povos indígenas infelizmente persiste até hoje e convoca os governos e a comunidade internacional a colocar um fim nessa opressão e a adotar medidas afirmativas para implementar os direitos humanos que têm sido negados aos povos indígenas. O Brasil é um dos 143 países cujos governos votaram pela adoção da declaração na Assembléia Geral da ONU, integrando um consenso global que tem sido construído ao longo dos anos. Apenas os governos de quatro países votaram contra a declaração e 11 se abstiveram.

É importante observar que cada um dos países que votaram contra a declaração -Austrália, Canadá, Estados Unidos e Nova Zelândia- explicou seu voto à Assembléia Geral, expressando apoio aos princípios fundamentais da declaração, mas apontando apenas para algumas disposições que eram vistas como problemáticas ou para imperfeições no processo que levou à adoção da declaração.

Muitos dos Estados que se abstiveram deram explicações semelhantes.

Nenhum governo manifestou oposição aos aspectos essenciais da declaração nem a enxergou como em conflito com suas Constituições ou sistemas políticos. Pelo contrário, a visão predominante, expressa pelos governos de todo o mundo ao votar a favor da declaração, foi a de que ela fortaleceria a construção de sociedades democráticas e de unidade nacional, com base no respeito à diversidade. A declaração avança um modelo de inclusão dos povos indígenas com o tecido social maior dos Estados que respeita padrões culturais distintos, sistemas de autoridade e formas de ocupação de terras tradicionais.

Esse modelo, em geral, é visto no mundo não apenas como compatível, mas também necessário para a construção de sistemas políticos e jurídicos democráticos fortes nos países em que os povos indígenas vivem.

O direito dos povos indígenas à "autodeterminação", como previsto na declaração, simplesmente significa que eles têm direito de controlar suas vidas e comunidades e de participar em todas as decisões que os afetem, dentro da estrutura vigente de unidade nacional e de integridade territorial de cada país.

O termo "territórios", também usado na declaração, é uma referência aos espaços geográficos nos quais os povos indígenas viveram e ainda buscam seguir vivendo e não tem nada a ver com uma possível soberania alternativa que afete a soberania nacional.

A referência da declaração aos grupos indígenas como "nações" ou "povos" serve para reconhecer seu caráter e existência como comunidades que transcendem gerações, com coesão política e cultural significativa, que eles procuram manter e desenvolver. Esses termos são usados no sentido de que nações e povos indígenas são distintos, mas também fazem integralmente parte da nação maior e do povo dos países em que vivem.

No mundo, as inquietações acerca da declaração com foco nesses termos estão diminuindo e é provável que desapareçam por completo, significando que a declaração e seus fundamentos de direitos humanos são mais bem compreendidos.

A tendência atual é acolher integralmente a declaração e dedicar-se à tarefa de fazer de seus termos uma realidade, bem como de construir ordens sociais e constitucionais mais justas para todos.

JAMES ANAYA , 49, professor do Programa de Direito e Política Indígena da Universidade do Arizona (EUA), é o relator especial das Nações Unidas para Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas. Esteve em missão no Brasil em agosto deste ano.

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