segunda-feira, 7 de julho de 2008

Mércio Gomes é entrevistado sobre seu livro ANTROPOLOGIA

A Fundação Astrojildo Pereira, do Partido Socialista Popular (PPS), me entrevistou sobre meu livro ANTROPOLOGIA e postou a entrevista em seu site. Ei-la

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Entrevista: Mércio Gomes

1) O que o motivou a escrever este livro?

Há anos dou aulas de Antropologia para universitários e sentia falta de um livro que abarcasse todos os temas e ao mesmo tempo os problematizasse. Também sei que muita gente gostaria de entender melhor do que trata essa tal de Antropologia. Depois, tive vontade de escrever sobre algumas idéias novas na Antropologia e para isso precisava fazer uma espécie de balanço da disciplina. Daí saiu a idéia do livro: um balanço, o estado da arte da disciplina e mais uma proposta inovadora, ainda tímida, como capítulo final.

2) Trata-se de um livro para iniciantes ou, ao contrário, é uma obra voltada para professores e especialistas?

Os iniciantes podem apreciar bem, creio. A recepção entre os alunos do primeiro ano da faculdade tem sido muito boa, segundo alguns colegas que adotaram o livro. Os professores e especialistas podem ter e usar essa visão balanceada e os argumentos que conduzem a uma proposta nova para a Antropologia.

3) Como você vê a antropologia hoje? Quais as suas principais correntes?

A Antropologia acadêmica hegemônica no Brasil e no mundo está dominada pelo paradigma da filosofia da diferença. É uma espécie de exacerbação do relativismo cultural. Tudo é relativo, inclusive a possibilidade da verdade. Retrocedemos à era dos sofistas que debatiam com Sócrates. Para os teóricos dessa corrente, não existe identidade, só identidades, não existe cultura brasileira, só culturas brasileiras. Só resta dizer, como no tempo de Sócrates, que não existe cavalo, só cavalos. Isto é, só existe a empiria, a res extensa, a diferença e a repetição. É Deleuze na veia. Acho que a Antropologia tem que praticar a filosofia da diferença como parte de sua estratégia de conhecimento, sua metodologia, mas não parar aí. Há a verdade, mesmo que por adequatio, como diria Heidegger. Há a verdade como diálogo intercultural ou como aproximação de horizontes, como diria Gadamer, há a verdade como transcendência da adequação com a intersubjetividade. Tudo isso esse livro toca de raspão, no último capítulo, mas não polemiza. Mais adiante no tempo, terei que apresentar tudo isso numa linguagem teórica.

4) A antropologia econômica possui ligações com o método marxista de análise. É possível e stender o marxismo ao exame das sociedades igualitárias, sem classes?

O marxismo antropológico nunca foi muito bem visto dentro da Antropologia acadêmica. Havia a pecha de que o marxismo se concentrava na evolução cultural, e o evolucionismo se tornara tabu na Antropologia desde o início de século XX. Exceto, naturalmente, na União Soviética. Porém, na década de 1960 e 1970 tivemos grandes marxistas que tentaram analisar as sociedades sem classe sob o prisma do modo de produção. A grande inspiração dos antropólogos marxistas eram os livros da juventude de Marx, especialmente os Cadernos Econômicos e Filosóficos, o livro póstumo escrito por e com Engels, A origem da família,da propriedade privada e do estado, e os seus Cadernos Etnológicos, os quais só foram publicados na década de 1940. Godelier e Meillassoux, dois franceses com tradição filosófica, nos deixaram trabalhos muito estimulantes. Eu mesmo escrevi minha tese de doutorado sobre a cultura e a história do povo Tenetehara inspirado nesses autores e em Marx. Anos depois, com novos dados e reformulação conceitual, essa tese foi publicada com o título O Índio na História. Também não poderia ser diferente, já que estava tratando de como aquela cultura mudara através dos tempos, e para isso a lógica dialética é a única capaz de dar conta da história e de suas transformações. Porém, a partir da década de 1980, o estruturalismo que dominava o cenário antropológico começou a ser suplantado pelas reflexões dos franceses Derrida, Deleuze, Guatarri e Lyotard, e aos poucos foi desbancando o estruturalismo e o marxismo. Eles reintroduziram a importância do Outro, da continuidade da negação, e se opuseram à sintetização dialética. Ganharam muita gente da Antropologia e de outras ciências sociais. Até da história, surpreendentemente. Com a expansão dessas visões para os Estados Unidos, a chamada lógica da diferença tomou conta da Antropologia e a reflexão antropológica dominante virou esse hiper-relativismo que presenciamos. Acho que a dialética marxista sofre da incapacidade de entender o Outro, daí ter sido escanteada tão facilmente. Se absorvermos o Outro como um ser em si, um novo ser que está além da síntese anterior do eu e de um primeiro Outro, poderemos reconstituir uma nova dialética. Isto é o que o filósofo brasileiro Luiz Sérgio Sampaio chamou de síntese hiperdialética. Estamos precisando é de uma hiperdialética, que é o que proponho no livro.

5) E quanto aos campos de atuação? Tem havido alguma renovação nesse sentido? A antropologia nasceu de um impulso colonial, mas hoje ela se diversificou. Fale um pouco sobre isso.

A Antropologia é mais do que um mea culpa colonialista. É a indagação básica do homem sobre o homem em sua vivência cultural. O fato de ter se expandido pela colonização da África, das Américas e da Oceania não lhe tira esse atributo básico. Daí é que essa indagação se dá em todos os ramos da vida e das sociedades. A Antropologia está nas cidades, nas nações, nos problemas sociais, em tudo. Basta ver o que os antropólogos vêm fazendo. E em geral contribuem para o conhecimento de nossa sociedade, para a formação de uma ética superior e para um diálogo com a filosofia.

6) A antropologia praticada no Brasil tem alguma originalidade, se comparada com aquela praticada nos Estados Unidos e na Europa? É possível exemplificar isso?

A Antropologia brasileira nasceu das indagações européias sobre raça e evolução, por um lado, e sobre o interesse com o índio como parte da identidade nacional, por outro. No fim do século XIX, começo do século XX, a época em que o Brasil mais se sentiu deprimido, a Antropologia era caudatária das teorias racistas dominantes. Do ponto de vista da Antropologia, o Brasil era uma país condenado a ser sempre vagabundo por causa da raça negra, considerada inferior à branca, mas também por ser mestiço, considerada ainda pior. (Lembremos que é dessa época a piada que fala que Deus criou o Brasil maravilhoso, mas pôs nele um povinho de nada...) Depois, com a influência da Antropologia culturalista de Franz Boas, surgiu Gilberto Freyre e ele nos proporcionou o alívio de que não é raça o nosso problema, e sim a cultura! E mais: nossa cultura é uma síntese de três culturas e por isso mesmo ela é muito boa. Gilberto Freyre não foi um antropólogo acadêmico e assim não deixou discípulos que continuassem sua visão. Porém, a estatura de seus livros nos ajudou a não sucumbir totalmente à influência das correntes antropológicas que foram se sucedendo desde a década de 1930. Nem o livro Tristes Trópicos de Lévi-Strauss, que é um belo livro, mas rabugento conosco, nos deprime mais. Assim, a Antropologia brasileira tem uma vertente de excepcionalidade porque não se submete complacentemente aos modismos e ás influências externas. Nosso tema maior é o Brasil e com isso ninguém nos diz mais do que nós mesmos. Agora, falta-nos uma visão teórica dessa excepcionalidade. É o que precisamos fazer daqui por diante.

7) Os índios formam um capítulo à parte no desenvolvimento do conhecimento antropológico entre nós. Você, nessa matéria, possui uma dupla vivência: além de cientista, você esteve à frente da Funai por cerca de três anos. Sem dúvida, uma posição privilegiada e enriquecedora. A pergunta é: o índio tem futuro?

Tem futuro num país que se posicione com uma dignidade que nenhum outro país até agora se posicionou sobre essa questão. Isto é, os índios têm futuro na medida em que o Brasil se abra à sua permanência com seres culturais específicos, como culturas que existem e que ajudam a cultura brasileira a se compreender melhor. Acho que o Brasil tem essa vocação de amar o índio e de querer que ele permaneça como tal. Os índios vão mudar, sem dúvida, na medida em que as políticas públicas os incluem no redemoinho nacional. Mas a aceitação de suas potencialidades os ajuda a guardar dentro de suas culturas as bases de suas diferenciações. O Brasil é o país que tem mais vocação para ser e permanecer verdadeiramente multicultural, não só multiétnico, como são outros países. Mas para que isso permaneça no futuro, é preciso mais lucidez do que nossos governantes têm tido até agora.

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