domingo, 6 de abril de 2008

Domingo, dia de encarar a questão do infanticídio


A Folha de São Paulo trouxe hoje uma matéria muito sensível e difícil, a questão do infanticídio. O jornal a trata com muita dignidade, trazendo uma história verídica e os comentários de diversas pessoas, da Funasa, do CIMI e de médicos brasileiros com muita experiência nesse campo. A Funai não comenta, não sei porquê.

O caso contado é verdadeiro nos aspectos gerais, mas não nos específicos. A Ong que defende a criança Zuruahá foi criada recentemente e deriva de uma missão protestante americana. Em certo momento, eles chegaram a esconder a criança da Funasa, em Brasília.

De minha parte, fui entrevistado e a matéria reflete parte do que eu disse. A questão do infanticídio precisa ser tratada com respeito e com diálogo. Disse que vivi um dilema muito profundo em minha vida enquanto presidente da Funai. Disse que a Funai tem que ser forte e ativa, a saúde tem que estar na Funai, ou a Funai na saúde, para termos os dados corretos, uma avaliação perfeita das situações e possibilidades maiores de ter a confiança dos povos indígenas. Disse também que conversei sobre esse assunto com Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Eugênio Salles, e que eles foram muito compreensivos e queriam ajudar. Mas essa parte não saiu na entrevista abaixo.

Por outro lado, a questão do infanticídio não é uma mera questão de saúde. É uma questão ética, em que dois pontos de vista cultural são confrontados. O mundo precisa de filósofos, éticos, antropólogos, indigenistas e do diálogo franco, aberto e intercultural com os povos indígenas.

Lei por si só não vai funcionar. Ou surgirá como repressora, ou não "pegará". O que vai valer é o diálogo intercultural, e para isso a Funai tem que estar à frente.

A Funai não serve só para demarcar terras indígenas e proteger os índios. Serve em especial para manter o diálogo intercultural, para fazer com que os índios se sintam parte da nação brasileira, e de que devem ser bem quistos por todos os brasileiros. Seguir normas ou leis brasileiras devem ser consequência dessa atitude, não obrigação. Daí porque Rondon dizia, em 1910, que os índios constituíam "nações autônomas com as quais devemos criar laços de amizade". Essa atitude está em vigor, mas como expectativa não ainda como realização.

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Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena

ONG levanta debate sobre direito à vida; antropólogos condenam imposição de lei e defendem que mudança ocorra por meio do diálogo

Em cerca de 20 das mais de 200 etnias do país, costume leva à morte gêmeos, filhos de mães solteiras e crianças com deficiência

Carmen Vaught - jul.07/Divulgação

No Xingu, Paltu Kamaiurá segura seu filho, Mayutá, que foi salvo da morte a que estava destinado por sua tribo; seu irmão gêmeo foi morto, como manda a tradição

ANA PAULA BONI
DA REDAÇÃO

Mayutá, índio de quase dois anos de idade, deveria estar morto por conta da tradição de sua etnia kamaiurá. Na lei de sua tribo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimo de maldição. Paltu Kamaiurá, 37, enviou seu pai, pajé, às pressas para a casa da família de sua mulher, Yakuiap, ao saber que ela havia dado à luz a gêmeos. Mas um deles já tinha sido morto pela família da mãe.

Paltu enfrentou discriminação da tribo, para a qual a criança amaldiçoaria a aldeia. Relutou, porém, em sair do parque do Xingu (MT), onde vive sua etnia e outras 13, muitas das quais praticam o infanticídio.

No ano passado, ele soube do trabalho da ONG Atini, que combate a prática, por meio de sua irmã Kamiru, que desenterrou o menino Amalé, condenado a morrer por ser filho de mãe solteira. Kamiru teve contato com a entidade em Brasília, ao buscar tratamento médico para o filho adotivo.

Paltu pediu ajuda à ONG para conscientizar os índios de sua aldeia. A entidade foi criada há cerca de dois anos pelos lingüistas Márcia e Edson Suzuki, que em 2001 adotaram Hakani, 12. Devido à desnutrição em decorrência de hipotireoidismo congênito, que seus pais acreditavam ser uma maldição, Hakani, da etnia suruarrá, deveria morrer. Foi salva pelo irmão.
É Hakani que dá nome ao documentário dirigido pelo diretor e produtor norte-americano David L. Cunningham, que está em fase de finalização e deve ser lançado neste mês no Brasil e nos Estados Unidos. Rodado em fevereiro em Porto Velho (RO) com o apoio da Atini, o vídeo mostra a história de Hakani e depoimentos contra o infanticídio, na voz de índios.

Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as mais de 200 do país, esse princípio tribal leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.

Projeto de lei

O documentário aborda projeto de lei que trata de "combate às práticas tradicionais que atentem contra a vida", que tramita na Câmara desde maio passado. A Lei Muwaji, como é chamada em homenagem à índia que enfrentou a tribo para salvar sua filha com paralisia cerebral -caso que inspirou a criação da Atini-, estabelece que "qualquer pessoa" que saiba de casos de uma criança em situação de risco e não informe às autoridades responderá por crime de omissão de socorro. A pena vai de um a seis meses de detenção ou multa.

A proposta é polêmica entre índios e não-índios. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão.

"Nós vivemos sob uma ordem legal e a lei diz que o direito à vida é mais importante que a cultura", afirma Maíra Barreto, doutoranda em direitos humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha), cuja tese é sobre infanticídio indígena.

Para ela, conselheira da Atini, há incoerência no fato de o Brasil ser signatário de convenções internacionais que condenam
tradições prejudiciais à saúde da criança e não cumpri-las no caso dos índios.

Em 2004, o governo brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e tribais "deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos".

Antes disso, em 1990, o Brasil já havia promulgado a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, que reconhece "que toda criança tem o direito inerente à vida" e que os signatários devem adotar "todas as medidas eficazes e adequadas" para abolir práticas prejudiciais à saúde da criança.

O antropólogo Ricardo Verdum, do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), acha o projeto de lei uma intromissão no livre-arbítrio dos índios. "Querer impor uma lei é agressivo, é uma violência."

O antropólogo Bruce Albert, da CCPY (Comissão Pró-Yanomami), diz que, para os yanomamis, "só as crianças às quais se podia dar a chance de crescer com saúde eram criadas".

O missionário Saulo Ferreira Feitosa, secretário-adjunto do Cimi (Comissão Indigenista Missionária), vê no debate conflito entre a ética universal e a moral de uma comunidade. "Ninguém é a favor do infanticídio. Agora, enquanto prática cultural e moralmente aceita, não pode ser combatida de maneira intervencionista."

Para Márcia Suzuki, presidente da Atini, o debate originado a partir do projeto traz à tona a questão da saúde pública desses povos.

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Ex-presidente da Funai afirma que sofreu "dilema'
DA REDAÇÃO

O antropólogo Mércio Pereira Gomes, que foi presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio) nos quatro primeiros anos do governo Lula, admite que sofria "um dilema muito grande" no órgão diante da questão do infanticídio. Como cidadão, é contrário à prática, mas como antropólogo e presidente do órgão, discorda de uma política intervencionista.

Segundo ele, há de cinco a dez mortes por infanticídio no Brasil por ano. Para tornar a política indigenista mais eficiente, Gomes afirma que a questão da saúde, hoje com a Funasa, deveria voltar para a Funai, de onde saiu em 1999.
Para as tribos, explica, o índio só considera um ser como pessoa quando ele é recebido pela sociedade. "Quando se pratica infanticídio, do ponto de vista cultural -não do biológico-, ainda não se está considerando um ser como completo. A antropologia analisa desse modo. Sob essa lógica cultural, não é uma desumanidade."

Segundo ele, a Funai "não toma uma posição" sobre o infanticídio, mas busca intervir em alguns casos. "Há uma busca de soluções, como a adoção."

Ele é descrente em relação aos efeitos de uma lei. "Quem vai poder fazer isso vai ser uma Funai com capacidade de dialogar."

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