terça-feira, 22 de janeiro de 2008

"Apoena, aquele que enxerga longe". Resenha do livro de Lilian Newlands

Neste fim de semana li o livro "Apoena, aquele que enxerga longe", da jornalista Lilian Newlands e com a colaboração de Aguinaldo Ramos. A edição é da PUC-Goiás.

É um livro de depoimentos de diversos amigos de Apoena, mas especialmente de Denise Maldi Meirelles, sua primeira esposa, uma antropólogo de distinção. O livro contém trechos do diário de campo de Apoena, ainda na década de 1970, e de algumas reflexões suas sobre o indigenismo e seus dilemas, na década de 1990. A entrevista com Sílvio Meirelles, em 1992, é o trecho mais recente. Assim, não temos nada sobre seu último período na Funai, o que é uma grande pena.

Apoena, como se sabe, era filho de Chico Meirelles, um dos grandes sertanistas brasileiros. Por ele nutria imensa admiração, respeito e amor. Chico Meirelles o levava em suas expedições desde os 8 anos. Foi com essa idade que Apoena caminhou com seu pai e uma equipe de sertanistas e índios pelas matas do médio Xingu para fazer o primeiro contato com os Mekragnoti, um subgrupo Kayapó. Foi com Chico que Apoena se aproximou dos Cintas-Largas, e lá foi buscar os corpos de Possidônio Cavalcanti e Acrísio, mortos pelos Cintas-Largas por causa de um terrível mal-entendido entre eles, em 1973.

Apoena é portador de uma ficha de indigenista invejável. Nascido em aldeia Xavante, aos oito anos estava no contato com os Kayapó. Aos 15 estava na frente de atração dos Parakanã, na região onde hoje está a Usina de Tucuruí. Aos 18 anos estava com os Cintas-Largas, junto com seu pai. Aos 22 fazia o contato inicial com os Suruí, praticamente só, no meio da mata. Aos 24 foi para a frente de atração Waimiri-Atroari, depois da morte de Gilberto Pinto e companheiros. Aos 25 contatou os Avá-Canoeiro; e em seguida consolidou o contato com os Krenhacarore, atualmente conhecidos como Panará. Aos 28 anos contatava os Zoró, que eram inimigos dos Suruí, e fez as pazes entre eles. Aos 30 anos contatou os primeiros grupos Urueuauau.

A reflexão que Apoena faz sobre os contatos é muito importante para o indigenismo brasileiro. Mesmo porque é quase inédita. Nenhum indigenista, a não ser Orlando Villas-Boas, de diversos modos, publicou suas memórias sobre a necessidade e a tragédia dos primeiros contatos com povos indígenas. Assim, as reflexões de Apoena certamente vão balizar as reflexões que muitos indigenistas estão preparando como memória de seus trabalhos. Apoena sabe que os primeiros contatos são uma tragédia e sabe que não havia outra coisa a fazer. Sobre o contato com os Avá-Canoeiro, Apoena tem a coragem e a grandeza de conceder que talvez tenha usado um método que não teria feito se tivesse refletido mais. Durante algumas semanas andou procurando os Avá, que diziam não existir, até encontrar os rastros claros de passagem de índios. Um dia decidiu fazer o contato de sopetão, entrando no acampamento dos Avá-Canoeiro fazendo muita gritaria. Foi recebido com uma saraivada de flechas, uma delas tendo atingido o nariz de um companheiro Xavante. Depois soltaram rojões de fogos de artifício e com isso os Avá paralizaram. Apoena tentou delimitar um território para os Avá, mas os militares da Funai não apoiaram, e aí os Avá foram morar na Ilha de Bananal, no posto Canuanã, dos índios Javaé, onde estão os sobreviventes e seus herdeiros.

Sobre o contato com os Krenhacarore, há o depoimento escrito de Denise Maldi, que também estava com Apoena, junto com Inah, irmã de Apoena, e seu marido, Xará. É um depoimento bem escrito e emocionante. Aliás, a Denise escrevia com um estilo próprio muito interessante. Fala da longa caminhada que deram até a aldeia dos Krenhacarore, de serem acolhidos numa das casas e passarem a noite em claro ouvindo os guerreiros cantando cânticos de guerra, batendo borduna. Apoena ficara impassível, mas, tendo notado a presença de mulheres e crianças, estava tranquilo.

Entre os Waimiri-Atroari, Apoena foi para lá também com Denise, no começo de 1975, e se hospedou na mesma casa onde Gilberto Pinto fora morto, ainda com manchas do sangueiro que ficou.

Apoena teve muitas brigas com os militares da Funai. Logo após a crianção do Parque Aripuanã, que deveria se moldar no exemplo do Parque do Xingu, foi exonerado e transferido. Em diversas ocasiões no livro expõe as falhas da Funai, a burocracia e, sobretudo, as artimanhas anti-indígenas que existiam naqueles tempos. Com alguns militares ele mantinha bom relacionamento, como com o general Ismarth de Araújo, que foi superintendente e depois presidente do órgão no governo Geisel.

O livro esclarece a relação entre os Meirelles e os Villas-Boas. Havia uma disputa surda entre os dois desde a década de 1950, a qual a mídia e os indigenistas faziam eco maior do que o real. Apoena foi convidado pelos Villas-Boas para dirigir o Parque do Xingu, quando estes já não se sentiam com forças para estar lá, e estavam desgostosos com os rumos que dera o chefe substituto, o antropólogo Olimpio Serra. O convite foi feito no histórico encontro contra o projeto de emancipação dos povos indígenas, no Teatro TUCA, da PUC de São Paulo, em 1978. Apoena passou oito meses no Parque, mas não deu certo. Muitos índios do Parque ficaram contra sua presença, em parte pela influência de Olímpio.

Em nenhum momento dos depoimentos transparece qualquer mágoa, qualquer rancor de Apoena para com adversários ou ex-amigo. Aliás, em certo momento Apoena declara que não tem inimigos. Mesmo durante o breve período em que foi presidente da Funai, quando diversos indigenistas foram contra ele e conspiraram para que os índios não o quisessem, como o próprio Raoni e muitos Xavante, Apoena não demostra mágoa dos seus colegas. Apenas relata que os indigenistas haviam se dividido, que as contradições do período não permitiam enxergar as coisas melhor.

Apoena tinha consciência de sua dignidade e de seu nome na história do indigenismo brasileiro. Por isso não se atazanava com os tempos bicudos. O fato de Raoni dizer que não sairia de Brasília enquanto Apoena não fosse demitido, quando era presidente da Funai, não o abalou. Anos depois retomaria seu relacionamento com Raoni. (Aqui penso em mim mesmo, quando Raoni e Megaron também sairam com ódio mortal, insuflados também por alguns indigenistas despeitados, para me derrubar da Funai, entre abril e agosto de 2006. Em janeiro de 2007 estávamos abraçados em Colider, nas reuniões que promovi com os índios Kayapó da região.)

O principal legado de Apoena é a criação do Parque do Aripuanã (mérito maior para seu pai) e a demarcação de quase todas as terras indígenas do estado de Rondônia. Apoena foi um administrador sério e diligente. Vivia frugalmente em Porto Velho, mas sabia se divertir com os amigos. Sofreu muito pela morte de seus amigos, e especialmente de Zé Bell, que suicidou com um tiro de um revólver-caneta, no peito, quando era o direitor do Parque Aripuanã. Morte incompreensível, que só por um processo de filosofia asceta seria aceitável.

Interessante saber que, quando jovem, Apoena participou da famosa Passeata dos Cem Mil, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, em junho de 1968, e que foi preso duas vezes naqueles tempos. Seu indigenismo foi sua saída de um possível engajamento mais forte no movimento anti-ditadura militar.

Apoena morreu de uma maneira trágica e besta, pelas mãos de um reles assaltante num caixa de banco em Porto Velho, em outubro de 2004. Sentimos muito sua falta.

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