domingo, 2 de dezembro de 2007

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 3

A Funai aos Quarenta Anos: Parte 3

Mércio Pereira Gomes

No final do governo Geisel, quando os ventos da democracia começam a soprar “lenta e seguramente” a Funai ficou em maus lençóis ao ter que se posicionar sobre o projeto de emancipação dos povos indígenas, elaborado dentro do Ministério do Interior e com a assessoria dos antropólogos Roberto Cardoso de Oliveira e Roque Laraia. Esse projeto foi lançado a público em fins de 1977, e estipulava que um indivíduo ou um povo indígena podia se emancipar da tutela do Estado e tornar-se sem tutela, livre, como um sujeito liberal. Portanto, parecia uma coisa liberalizante, algo previsto pelo próprio Estatuto do Índio. Entretanto, ninguém, a não ser seus proponentes, considerou um projeto bom e de boa fé. Assim, a partir de 1978 a resistência a ele se deu por todos os quadrantes do indigenismo brasileiro. Lembro-me quando nós antropólogos fizemos uma reunião na USP para discutir o projeto, e houve uma total rejeição a ele. Em seguida houve uma grande reunião no auditório magno da PUC, de São Paulo, onde mais de 500 pessoas se manifestaram desfavoráveis ao projeto. Estavam lá, entre outros, Darcy Ribeiro, Carmen Junqueira, Florestan Fernandes, Dalmo Dallari, Daniel Cabixi, Mário Juruna e muitos mais na platéia, inclusive este que vos escreve. Já os antropólogos co-autores do projeto ficaram quietos daí por diante e depois disfarçaram suas autorias.

Durante todo o ano de 1978 houve manifestações contrárias nas principais capitais do Brasil, de Rio Branco a Porto Alegre, de São Luís ao Rio de Janeiro. Eu, pessoalmente, participei de debates (que eram, na verdade, eventos contra o projeto) em São Paulo, Lins, Mogi-Guaçu, Vitória, Ijuí, Natal, Fortaleza e São Luís, às vezes com a presença de índios, às vezes só com outros antropólogos ou intelectuais simpáticos à causa. Darcy Ribeiro, que estava voltando do exílio, foi o grande porta-voz da resistência ao projeto de emancipação, e chegou a ser processado pelo ministro do Interior, Rangel Reis, por tê-lo dito palavras consideradas insultuosas. Todas as principais associações científicas, como a SBPC, a ABA, bem como a OAB e a CNBB, e associações estrangeiras, como a Associação Americana de Antropologia, se irmanaram contra esse projeto.

A análise que fazíamos sobre a questão da emancipação era de que ela seria uma tentativa de jogar os povos indígenas no valão comum da luta pela sobrevivência, com a isenção do Estado da sua responsabilidade e com todas as desvantagens de povos que tinham conhecimento restrito da sociedade brasileira. Era des-culturalizar os povos indígenas e individualizá-los, tornando-os mais vulneráveis às forças antiindígenas dominantes. Um dos argumentos mais fortes era de que o Estado queria se livrar de sua responsabilidade e deixar os índios se virarem por conta própria ao se tornarem emancipados. Pelo lado dos proponentes, argumentava-se que os índios tinham o direito a serem autônomos e livres, que a tutela era um castigo e um domínio estatal, que os paternalizava e os infatilizava, e que seu desenvolvimento se daria quando eles caminhassem pelos próprios pés. É irônico que esses argumentos são os mesmos que hoje ouvimos de Ongs que se dizem favoráveis ao movimento indígena.

O general Ismarth fez a defesa do projeto perfunctoriamente, sem muita convicção, e gostou muito quando o governo se deu por vencido e o engavetou. Além do que, os indigenistas já estavam abertamente contra a Funai dos militares e dos burocratas desonestos, e tiveram um papel importante em convencer o general a se manifestar pouco e deixar que a sociedade civil tomasse o palco.

Durante o ano de 1978 as forças pró-indígenas dispersas no Brasil se uniram em várias ocasiões e formaram incipientes organizações pró-indígenas. Estavam dispostas a lutar pelos povos indígenas e viam no projeto de emancipação um perigo enorme. As mais fortes se tornaram Ongs a partir da década de 1990, com o neoliberalismo implantado. A idéia política dominante era de combater o Estado, a ditadura militar, a política dos militares da Funai. Do lado da Funai, muitos indigenistas se uniram a partir desse movimento e passaram a ser uma força mais potente no combate à militarização da questão indígena. Naturalmente todos estavam contra o projeto de emancipação. Dois anos depois, num momento memorável, que foi lembrado recentemente, em livro, por Fernando Schiavini, iriam formar sua primeira e única associação corporativa, a Sociedade de Indigenistas Brasileiros (creio ser este o nome). Para logo depois serem demitidos sumariamente. Alguns só voltarem anos depois com a anistia.

A união de antropólogos e indigenistas, com outras categorias profissionais, como jornalistas, advogados e missionários, criou o movimento indigenista contemporâneo, tal como havia acontecido nos anos que precederam a criação do SPI. Entretanto, essa união não permaneceu por muito tempo porque não aconteceu uma mudança substantiva no órgão indigenista, nem na formulação de uma política indigenista diferente. Porém foi fundamental para, quando iniciou-se a Constituinte, em 1987, serem capazes de, em aliança com os povos indígenas já melhor organizados, obterem o apoio dos constituintes para a formulação de um bom texto constitucional sobre os povos indígenas. Sobre isto falaremos com mais detalhes outro dia.

Emancipação, autonomia, auto-determinação -- estes são conceitos conseqüentes um ao outro na questão indígena brasileira.

Emancipação quer dizer o fim da tutela estatal, e é pedido por muitas Ongs, fazendo eco aos antropólogos que elaboraram o projeto de emancipação de 1977. Alegam que os tempos mudaram e que os povos indígenas já se sentem fortes o suficiente para encararem o fim da tutela e obterem outros instrumentos jurídicos de proteção generalizada. Acreditam que o espírito que regeu a Constituinte de 1987-88 continua vivo. Algumas lideranças indígenas, as mais conspícuas no panorama midiático, também querem o fim da tutela alegando que é uma coisa derrisória às suas imagens e identidades sociais. Mal enxergam o que seria o fim da tutela para seus patrícios vivendo cercados pela sociedade dominante, com um sistema social e jurídico preconceituoso e injusto em relação às suas culturas. O jurista Dalmo de Abreu Dallari acha que a tutela é só uma proteção a mais para os povos indígenas, sobretudo os que têm menor relacionamento com a sociedade brasileira hegemônica, e que seria uma temeridade aboli-la.

Autonomia é um conceito político e cultural que muitos povos indígenas vêm exercendo em quase todos os aspectos de suas vidas e culturas. Mas há ainda muitos passos a caminhar.

Auto-determinação é o grande conceito político que implica um poder próprio de encarar o mundo político dominante. Recentemente a ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, cujo artigo 3º diz que:

“Os povos indígenas têm direito à auto-determinação. Por esse direito podem livremente determinar seu estatuto político e suas condições de desenvolvimento…”

Desse modo, apesar de certo receio por parte de alguns segmentos do governo brasileiro, o Brasil assinou esta Declaração e se comprometeu a trabalhar para que ela se tornasse uma realidade política. O limite dessa auto-determinação é a pretensão de se tornar uma nação própria, o que significaria o desmembramento da nação-estado, o qual está vetado em outro artigo da referida Declaração.

Assim, auto-determinação será entendida diversamente por cada país. É interessante lembrar que quatro países foram contra essa Declaração: Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, por motivos diversos, mas, basicamente, porque temem, em seus sistemas jurídicos, que os povos indígenas entrarão com ações requerendo desligamento das respectivas nações.

No Brasil, a auto-determinação será entendida com uma extensão da autonomia. Os povos indígenas terão o poder interno sobre suas sociedades e sobre suas terras, conforme a Constituição brasileira. Haverá discussão sobre os sistemas jurídicos do Brasil e de cada povo indígena, e haverá a formação de pactos entre cada povo indígena e o Estado brasileiro para definir os termos de relacionamento, inclusive ajuda financeira.

É importante ressaltar, por fim, que toda essa discussão emerge da grande questão da emancipação jurídica debatida na década de 1970 e que foi tão importante para o surgimento do movimento indigenista e indígena brasileiros. Nisso, a Funai também esteve presente à época, através de seus indigenistas e antropólogos, bem como na formulação dessa Declaração Universal nos últimos quatro anos, através da minha pessoa e do meu papel na negociação dessa Declaração. Os críticos que me acusaram de fazer tantas viagens a Genebra e Nova Iorque agora bem que poderiam fazer suas retratações, para o bem de suas consciências.

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